“Bola da vez.” Assim o diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Clemente Ganz Lúcio, enxerga a pretensão de mudanças nas regras para aposentadorias, pensões e auxílios dos brasileiros. A confirmação de que a prioridade agora será encaminhar a reforma da Previdência veio por meio de duas declarações dadas menos de 24 horas após o fim das eleições gerais no País. Ainda sem resposta, contudo, é se será a Proposta de Emenda à Constituição 287-A/2016 – congelada desde fevereiro último dada a forte mobilização sindical (confira em https://goo.gl/FE8VSM) – ou uma ainda mais radical.
Segundo reportagem do Correio Braziliense, em seu primeiro telefonema ao presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) na noite de 28 de outubro, o atual mandatário do País, Michel Temer, sugeriu que o tema volte à pauta ainda na transição governamental. Quase no mesmo momento, Paulo Guedes, cotado como próximo ministro da Fazenda, afirmou – conforme o Portal G1 – que reforma da Previdência será primeiro “grande item” do modelo econômico que pretende levar a cabo.
Se a decisão for levar à tramitação a PEC 287-A/2016, como lembra o vice-presidente de Assuntos da Seguridade Social da Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip), Décio Bruno Lopes, é necessário que se suspenda a intervenção federal no Rio de Janeiro, já que nenhuma mudança constitucional pode ser feita se algum estado encontrar-se nessa condição. “Mas ninguém tem certeza do que está por vir. O que colocamos para a sociedade de maneira geral é que essa proposta de reforma é muito perversa, tanto ao servidor público quanto ao trabalhador sob regime geral. Estabelece um limite de idade progressivo. Além de ser de 65 anos para homens e 62 para mulheres, não levando em conta as desigualdades regionais, a cada vez que se elevar a expectativa de vida, essa idade aumentará em um ano. É tão esdrúxulo que você passa a não saber qual o limite. Será que vai chegar a 100 anos? Isso não existe em lugar nenhum do mundo”, indigna-se.
Embora o texto substitutivo tenha alterado o tempo mínimo de contribuição para 15 anos ao trabalhador em geral, manteve em 25 anos – conforme a proposta original – para o servidor público. O que, como divulgou o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), “resulta discriminatório e anti-isonômico” (confira análise na íntegra em https://goo.gl/fcs7wc). Lopes lembra que, objeto de emendas constitucionais, o servidor público empossado após 2004 já conta com as mesmas regras aplicadas ao trabalhador do setor privado.
À moda Pinochet
Se o substitutivo à PEC 287/2016 já é perverso, o risco para Ganz Lúcio é que esse seja ignorado e em seu lugar seja feito algo ainda pior: “O que o Paulo Guedes propõe é a reforma feita no Chile nos anos 1980.” Ou seja, mudança de sistema de repartição – como vigora hoje no Brasil – para um de capitalização. No primeiro, os trabalhadores contribuem com um fundo público que garante os benefícios aos cidadãos. No modelo de Pinochet, cada um faz sua própria poupança, que é depositada em uma conta individual. Como explica reportagem da BBC de 16 de maio de 2017, “enquanto fica guardado, o dinheiro é administrado por empresas privadas, que podem investir no mercado financeiro”.
O diretor do Dieese explica as consequências no país sul-americano, em que tem havido enormes protestos por uma contrarreforma: “Mais de 30 anos depois, a população lá quer acabar com aquele regime, e o Estado teve que fazer outra regra, que custa caro e está longe de oferecer a proteção anterior. Um chileno que se aposenta tem uma renda menor do que aquele que se aposentava pelo sistema público. A ideia do regime ditatorial era de que o mercado ia resolver tudo. Esse ficou feliz, porque durante 30 anos ganhou dinheiro fácil e começou a entregar agora uma aposentadoria que é um terço do regime anterior. Se fizermos uma coisa parecida no Brasil será uma tragédia.”
Para o diretor de documentação do Diap, Antônio Augusto de Queiroz, o Toninho, dificuldade adicional é que “o novo Parlamento é pior que o atual, muito conservador, mais liberal e identificado com os interesses do mercado. E a bancada sindical perdeu algo em torno de 20 integrantes, então o risco de aprovarem matérias contra os trabalhadores é ainda maior”.
As ameaças são enormes, como reitera. Já no atual Congresso passou a Lei 13.467/2017 – reforma trabalhista – que retirou direitos históricos e enfraqueceu sindicatos. E, juntamente com o alto índice de desemprego diante da crise, tem efeito sobre a Previdência, já que, segundo observa Lopes, a flexibilização nas relações do trabalho consequentemente impacta nas receitas para o financiamento da seguridade social. Para ele, o que deveria ser feito é o contrário do que se propõe em relação à Previdência. Deveria se otimizar a arrecadação, pondo fim, por exemplo, a renúncias fiscais e cobrando dívidas das empresas.
Resta ao movimento sindical se preparar e resistir. “Se for cumprido o que está sendo dito, vai exigir forte ação junto ao Congresso Nacional e capacidade propositiva. Corremos o risco de ter uma reforma encaminhada como foi a trabalhista, goela abaixo. Podemos ter um tempo de muita adversidade”, avisa Ganz Lúcio.
Diante dessa possibilidade, o presidente da FNE, Murilo Pinheiro, é categórico: “Seguiremos fazendo gestões junto ao Legislativo para barrar qualquer ataque a direitos duramente conquistados.” Lopes atesta: “É preciso mostrar aos parlamentares que com essa reforma será feito um desmonte da Previdência Social.”
Soraya Misleh