Especialistas do setor estão apreensivos com mudanças nas diretrizes nacionais dos serviços relacionados ao abastecimento de água potável, manejo de água pluvial, coleta e tratamento de esgoto, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos. O motivo é a minuta de Medida Provisória (MP) ou projeto de lei (PL). Divulgada pelo governo federal em outubro último, visa modificar o marco regulatório do setor, estabelecido pela Lei 11.445, que completou dez anos em 2017, e a Lei 9.984/2000, que cria a Agência Nacional de Águas (ANA).
Ao jornal Engenheiro, o Ministério das Cidades não deu detalhes sobre a proposta. Limitou-se a dizer que a matéria “está em fase de elaboração” e o prazo para o governo enviá-la ao Congresso Nacional depende de qual instrumento será utilizado, se MP ou PL. Para o vice-presidente da FNE, Carlos Bastos Abraham, o maior risco dessa iniciativa é a possível desestruturação do setor, com reflexo direto na universalização dos serviços. “É um grave erro do governo federal”, critica. O presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes), Roberval Tavares de Souza, reforça a opinião do perigo do desmonte e se opõe totalmente à edição de MP, por considerar o instrumento “pouco democrático”.
O principal e unânime desacordo está no art. 10-A da minuta, em que se “exige que o município, antes da celebração do contrato de programa, realize um chamamento público quanto ao interesse de outras empresas públicas e privadas em disputar a concessão dos serviços de saneamento”. Para o presidente da Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae), Aparecido Hojaij, eliminar o contrato de programa – modalidade contratual entre dois ou mais entes federativos, ou entes federativos diversos e um consórcio público – e instituir o Estudo de Viabilidade Técnica e Econômica (EVTE) equivale a condenar os municípios menores à falta de saneamento. “Nenhuma empresa privada vai se interessar em atuar num lugar pequeno e não rentável”, afirma.
O engenheiro civil Abelardo de Oliveira, há 42 anos na área, coordenou em 2003, como secretário Nacional de Saneamento Ambiental – órgão ligado ao Ministério das Cidades –, o processo que envolveu a elaboração, discussão e aprovação da lei que o governo pretende mudar agora. Ele lamenta que todo um acúmulo de debate e conhecimento seja desprezado: “A Lei Nacional de Saneamento Básico (LNSB) foi uma construção democrática de mais de dois anos, que conseguiu reunir todos os setores envolvidos e interessados e resultou, em 2005, no PL 5.296. Depois disso, tivemos mais dois anos de ampla discussão no Congresso Nacional, com realização de seminários e audiências públicas. E conseguimos a proeza de aprovar a norma por unanimidade em 2007. Triste ver que isso pode ser mudado numa ‘canetada’.”
Para ele, a alteração pretendida pelo governo atende apenas aos interesses da iniciativa privada. O apontamento é endossado pelo presidente da Delegacia Sindical do Seesp, em Taubaté, Breno Botelho Ferraz do Amaral Gurgel, há 44 anos na área e ex-funcionário da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp). “O governo Temer pretende facilitar a entrada das empresas privadas que têm apenas interesses econômicos”, diz. O dirigente considera a minuta do governo “muito confusa”. E avalia: “Basicamente o que está escrito, e eu não concordo, é a não criação de uma agência específica para o saneamento, encaixando o serviço na ANA, que não dá conta nem das suas próprias atribuições.” Abraham concorda que as mudanças podem significar apenas “atender à ânsia arrecadatória de empresas e do governo, com o claro objetivo de facilitar a subdelegação ou subconcessão de operação dos serviços”.
Oliveira lamenta que o País esteja na contramão do mundo: “O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, entusiastas das privatizações do setor nos anos 1980 e 1990, venderam aos países a ideia de Estado incompetente e de eficiência do setor privado. Agora chegaram à conclusão de que as privatizações fracassaram, porque não cumpriram os acordos firmados.” O ex-secretário nacional cita casos de grandes cidades que retomaram os serviços, como Berlim (Alemanha), Buenos Aires (Argentina), Budapeste (Hungria), La Paz (Bolívia) e Paris (França). “A tendência mundial agora é a reestatização.”
A experiência é constatada também em cidades brasileiras. Oliveira relaciona dois casos emblemáticos: “Em Manaus (AM), após 17 anos de privatização, o que existe é o não cumprimento de metas de investimentos e universalização, com apenas 10% de cobertura em esgotamento sanitário e mais de 600 mil pessoas sem acesso a água. A capital amazonense está em 95º lugar na prestação dos serviços de água e esgoto, entre os 100 maiores municípios, conforme o Instituto Trata Brasil. Outro caso é do município paulista de Itu, que passou à iniciativa privada em 2007 e em 2016 a Prefeitura local retomou os serviços, por descumprimento de contrato e falta de investimentos.”
Gurgel explica que, inicialmente, a lógica da privatização era de que melhoraria o desempenho do setor. “No início, as empresas privadas fizeram até isso, mas aumentaram as tarifas e cobraram de todo mundo, porque sua lógica é o lucro. O empresário não quer correr riscos. Se a receita não cobrir as despesas, nesses contratos o município ainda paga um bônus.” Outro aspecto levantado por ele é que com a privatização acaba a política do subsídio cruzado, dispositivo que possibilita que municípios com menos recursos tenham acesso aos serviços.
Para Abraham, o marco regulatório até pode ser melhorado e aprimorado, mas isso passa por priorizar os investimentos na área. Oliveira endossa e diz que “o setor precisa garantir recursos perenes e permanentes, conforme previsto no Plansab (Plano Nacional de Saneamento Básico), incluindo as ações estruturantes para o fortalecimento e requalificação das empresas públicas; e instituir o fundo de universalização e subsídios para a população de baixa renda”.
A área, como ressaltam os especialistas, tem impacto direto na saúde e em outras políticas públicas. Assim, Oliveira considera a presença do poder público essencial. Além disso, prossegue, “é um serviço já considerado pela ONU (Organização das Nações Unidas) como direito humano fundamental”.