Pela Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), Lei número 11.346, de 15 de setembro de 2006, foi criado no Brasil o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) o qual tem por objetivo assegurar o direito humano à alimentação adequada.
Em seu artigo terceiro a LOSAN estabelece que “Segurança Alimentar e Nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis”.
A partir da LOSAN foram instituídos Marcos Legais e Institucionais de uma agenda em prol da Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil tais como a recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), a instalação da Câmara Intersetorial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN), a elaboração do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PLANSAN 2012/2015).
Em decorrência das legislações e de todo um trabalho de conscientização foi possível ao Brasil sair do Mapa da Fome das Nações Unidas em 2014. Todavia, a evolução do Brasil em termos de Políticas Públicas para assegurar segurança alimentar e combater a miséria não possibilitou quaisquer garantias ao Brasil de ficar em uma situação despreocupada com relação à segurança alimentar. O Brasil por não conseguir uma condição consolidada para garantir o direito à alimentação retorna ao Mapa da Fome.
Os elevados índices de fome e de desnutrição da população brasileira em geral não são iniciados com a pandemia de Covid-19 como se alardeia em vários segmentos da sociedade. Embora, é claro, estejam sendo agravados (e muito) pela pandemia de Covid-19 sem dúvidas.
Mesmo antes da pandemia de Covid-19 já era frequente encontrar quase metade das famílias brasileiras em situação de escassez de alimentos moderada ou grave. Algo apenas absurdo em se tratando de ser o Brasil uma das dez maiores economias do planeta.
Com a redução de renda familiar quase que automática, com empregos temporários, com subempregos, sem carteira assinada, com renda instável ou insuficiente, com dificuldades de aquisição de alimentos mais nutritivos, com alimentos que somente engordam e não nutrem o suficiente, os menos favorecidos se alimentam mal, outros quase não comem e inúmeros morrem de fome.
E ainda no meio de toda a desgraça produzida pela insegurança alimentar e nutricional que vem assolando a população desfavorecida do Brasil ainda surgem prognósticos que confundem as inúmeras pessoas pobres obesas das classes mais pobres com pessoas sadias tentando desqualificar a gravidade da situação. Mal se avalia que inúmeros daqueles habitantes obesos podem estar gravemente desnutridos porque ingerem quase que exclusivamente elevadas quantidades de macronutrientes (carboidratos, gorduras, proteínas) por serem bem mais baratos e não têm acesso regular aos micronutrientes (vitaminas e minerais). Assim, existem milhões de obesos passando fome e outros tantos morrendo de fome, principalmente, as crianças.
Se a alimentação não é suficiente e saudável, a manutenção da vida não é de forma alguma garantida. Um obeso vivendo na miséria pode encontrar-se em séria insegurança alimentar quando tem a falta agravada de micronutrientes em seu organismo. Alimentar-se bem (ou alimentar-se efetivamente) vai muito além de simplesmente comer.
O corpo humano necessita de um conjunto balanceado de nutrientes que são formados pela união dos micronutrientes e dos macronutrientes. Sem os nutrientes o organismo humano não funciona bem. A falta dos micronutrientes (substâncias orgânicas, não sintetizadas pelo organismo) gera doenças ou disfunções.
Os micronutrientes englobam as vitaminas e os minerais. As vitaminas que contribuem para a promoção do bem-estar físico e mental são essenciais para o funcionamento dos órgãos, o crescimento e a reconstrução de tecidos, sendo, também, necessárias para garantir as várias reações metabólicas no corpo humano. Já os minerais são responsáveis pela manutenção da vida, pois estão associados às funções estruturais e biológicas do corpo dos indivíduos.
Os macronutrientes, por sua vez, fornecem energia ao organismo. Água, carboidratos, gorduras e proteínas são classificados como macronutrientes.
Assim, se uma pessoa não tem na sua alimentação diária quantidade suficiente de nutrientes retirados de porções regulares de frutas, verduras, legumes, carnes, leite, ovos, cereais, estará sujeita à insegurança alimentar ou à desnutrição.
Os nutrientes estimulam, também, o timo (glândula do sistema imunológico) a produzir linfócitos que são células responsáveis pela defesa do corpo que defendem o organismo contra agentes bacterianos, fungicidas, fúngicos, vírus e células cancerosas.
Claro, então, que a falta de nutrientes suficientes faz toda a diferença na vida das pessoas. Diminuindo os nutrientes haverá diminuição das proteções do corpo.
Mas, se os adultos sofrem gravemente com a insegurança alimentar e com a desnutrição, com o desequilíbrio ou falta dos nutrientes, imagine o mal que faz para uma criança que sem ter o que comer é obrigada a ingerir alimentos pouco nutritivos tais como cereais, tubérculos ou raízes frequentemente para não morrer.
Tem-se estimado que existem cerca de 55,2% dos brasileiros em situação de insegurança alimentar sobrevivendo nesta terrível pandemia de Covid-19. O que, invariavelmente, está gerando um aumento assustador na mortalidade infantil.
Antes desta pandemia de Covid-19 existiam, por certo, muitas crianças que já enfrentavam grandes problemas como a fome, a doença e a pobreza. Mas, em tempos de crise são as crianças que mais sofrem e padecem. Tanto não sabem como se proteger quando não têm condições mínimas para se defender. Em tempos de graves crises o medo e os traumas as martirizam dia após dia.
Com a escassez ou diminuição de alimentos em casa porque seus pais não têm mais a pouca renda que possuíam, sem a merenda escolar porque a escola não está mais funcionando presencialmente, com pouquíssimas doações, a fome e as doenças estão lá todos os dias machucando, maltratando ou matando as pobres crianças indefesas.
Os percentuais sobre qualquer grau de insegurança alimentar entre os mais pobres são estarrecedores. Milhões sofrem privação de alimentos ou têm que deixar de comer em alguma refeição do dia. Nestes casos, quando se passa fome, tem-se, tecnicamente, a tal insegurança alimentar grave.
Estudos dão conta que só a pandemia de Covid-19 será responsável por aumentar em até 22% o número de mortes de crianças de até cinco anos; isto se acabar brevemente. A queda da renda familiar e o isolamento social afetou e está afetando drasticamente a segurança alimentar e nutricional das crianças.
É notório o desastre. Próximo de 50% da população relata que teve que mudar seus hábitos alimentares desde março de 2020 quando iniciou a pandemia de Covid-19. Mas, nas famílias com crianças este percentual sobe a quase 60%. Não é exagero afirmar, mas aquelas crianças que tinham na merenda escolar sua única refeição regular do dia estão passando fome. Incontáveis crianças estão morrendo por não terem o que comer.
Embora a situação seja desastrosa ainda não se percebeu a urgência da fome e muitas crianças continuam morrendo, como, também, a vida de idosos, adoentados e miseráveis estão sendo retiradas em consequência da insegurança alimentar grave.
Pense na seguinte cena, no mínimo grotesca. Uma família de menos favorecidos ganha lá uma cesta básica com aqueles usuais 11 (onze) ingredientes tipo um quilo de arroz, um quilo de feijão, um pacote de macarrão, um quilo de fubá, um quilo de farinha de trigo, uma lata de 900 ml de óleo de soja, 500 gramas de café, um quilo de açúcar, um quilo de sal, um pacote de biscoito maisena e uma lata de sardinha; como forma ajuda social por ter perdido sua renda familiar mensal. Mas, se a família não tem mais renda alguma não poderá comprar o gás ou a lenha e nem mesmo terá dinheiro algum para pagar a água e a luz onde mora (supondo, é claro, que tenha onde morar). Aqueles alimentos da cesta básica doada serão comidos crus, diretamente das embalagens? Perceba o paradoxo, a contradição, a crueldade da situação.
Alguns argumentarão que diversas das famílias diretamente afetadas pela crise foram e estão sendo ajudadas com o Auxílio Emergencial de 2020 ou de 2021 do Governo federal que somam bilhões de reais, que existem diversos Programas Estaduais ou Municipais que estão auxiliando aquela para da população que perdeu sua renda, que vários outros Programas Sociais mantidos pela iniciativa privada estão aí disponibilizando recursos para ajudar aqueles que perderam seus empregos ou seu “ganha pão”.
Mas, a pergunta persiste: como se cozinha os ingredientes das cestas básicas ganhas sem água, sem gás, sem lenha, sem luz, sem casa?
A despeito desta questão posta facilmente se distinguirão outros pontos que evidenciarão a violação do direito à alimentação previsto nas Legislações correspondentes. Se muito for avaliado mais detidamente, poder-se-á chegar à conclusão que da forma com a qual os processos estão sendo conduzidos a gravidade da situação não encontrará solução ou, pelo menos, se conscientizar-se-á que as soluções são muito difíceis e complexas.
Se a pandemia de Covid-19 continuar, certamente a situação deve se agravar ainda mais. Uma calamidade ainda maior estará por vir. A morte pela fome será ampliada e corre-se o sério risco de a mortalidade infantil por desnutrição e fome nas classes menos favorecidas ficar descontrolada.
A morte pela fome é um suplício inimaginável. A morte de uma única criança pela fome é um horror, um crime hediondo.
Como facilmente pode-se pesquisar, um ser humano saudável levará no máximo de 50 a 60 dias para morrer de fome. É certo, entretanto, que após alguns poucos dias sem se alimentar, já com fortes dores no estômago, o organismo da pessoa sem comer começará a queimar as reservas existentes de gordura para produzir energia para mantê-la viva.
Poucos dias depois, com dores ainda maiores, o fígado começará a produzir toxinas maléficas para o organismo e as reservas de gordura acabarão fazendo com que o corpo sofra grave desnutrição. Intenso emagrecimento, hipotensão e perda de eletrólitos vão ocorrendo até que os músculos passarão a ser consumidos para gerar a necessária energia.
Na sequência, ocorrerão arritmias cardíacas, redução das proteínas e todos os órgãos começarão a diminuir de tamanho. O organismo já sem reserva alguma de vitaminas e minerais e com o sistema imunológico severamente enfraquecido fica totalmente exposto a qualquer tipo de doença sem a menor chance de defesa até entrar em estado de torpor. É quando os tecidos e órgãos degradados passam a ser metabolizados até atingir a morte por parada cardíaca.
Na fase terminal, atingida muito lentamente, esperando apenas a morte chegar, em um tipo de transe prolongado e indefinido, a pessoa não sentirá mais forme, não sentirá mais dor alguma.
Semelhante morte horrível é destinada (atualmente) a um ser humano a cada 4 (quatro) segundos em um planeta que produz alimentos para alimentar bem e adequadamente a todos com muita folga.
Mas, não apenas a morte de seres humanos pela fome é um absurdo. A ingestão de alimentos em quantidade e qualidade nutricional insuficientes gera nas crianças tanto distúrbios neurológicos ou graves problemas de saúde mental quanto acentua o desenvolvimento de doenças como diabetes, osteoporose, hipertensão, câncer, problemas cardiovasculares, além da perigosa obesidade decorrente do grande consumo de alimentos ricos em gorduras e açúcares simples por serem bem mais baratos.
Principalmente para crianças menores de cinco anos a fome contribui, também, para o intenso definhamento e para o aumento da vulnerabilidade a doenças infecciosas (como é o caso da Covid-19) que se não matarem poderão gerar graves sequelas para a vida toda.
É urgente, então, a união das inteligências para estudar e engendrar soluções efetivas que venham acabar tanto com o suplício da morte pela fome quanto para eliminar definitivamente os horrores físicos e mentais ocasionados pelos sofrimentos de se passar fome sistematicamente diariamente.
* Carlos Magno Corrêa Dias é professor, pesquisador, conselheiro efetivo do Conselho das Mil Cabeças da CNTU, conselheiro sênior do Conselho Paranaense de Cidadania Empresarial (CPCE) do Sistema Fiep, líder/fundador do Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento Tecnológico e Científico em Engenharia e na Indústria (GPDTCEI), líder/fundador do Grupo de Pesquisa em Lógica e Filosofia da Ciência (GPLFC), personalidade empreendedora do Estado do Paraná pela Assembleia Legislativa do Estado do Paraná (Alep).