Um projeto de lei para autorizar o governo paulista a criar uma Secretaria de Engenharia de Manutenção está em fase de estudo e preparação na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). Atendendo proposta do SEESP e da Federação Nacional dos Engenheiros (FNE), a iniciativa do deputado Carlos Giannazi (PSOL) é um dos desdobramentos de audiência pública realizada naquela Casa em 9 de fevereiro último para apurar as causas do acidente nas obras da Linha 6 – Laranja do metrô no dia 1º. do mesmo mês.
Além disso, o Partido dos Trabalhadores (PT) está colhendo assinaturas de parlamentares para a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) com o objetivo de investigar o que ocorreu e o modelo de contrato adotado na concessão da Linha 6, de parceria público-privada (PPP) de ponta a ponta – em que a empresa é responsável pela construção, operação e execução, sem qualquer participação, acompanhamento ou fiscalização do Metrô-SP. As obras, paralisadas desde setembro de 2016 nessa PPP com histórico bastante controverso, foram retomadas sob novo concessionário – o grupo espanhol Acciona – em julho de 2020. A Linha 6 deve ligar Brasilândia, bairro periférico na zona noroeste da Capital, a São Joaquim, e contará com 15 estações.
O modelo de contrato esteve no centro das críticas durante a audiência pública virtual convocada conjuntamente pelos mandatos dos deputados Carlos Giannazi, Paulo Fiorilo (PT) e Lecy Brandão (PCdoB), da qual participou o SEESP, além de outros sindicatos (Metroviários, Arquitetos e dos Trabalhadores em Água e Esgoto), de representante do Movimento Metrô Brasilândia e dos vereadores Eliseu Gabriel (PSB), Celso Giannazi (PSOL) e Paula Nunes (Bancada Feminista/PSOL).
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Nessa linha, Murilo Pinheiro, presidente do SEESP e da Federação Nacional dos Engenheiros (FNE), defende a reformulação da modelagem adotada e a responsabilização da empresa concessionária. Assim, propugna a criação da Secretaria Estadual de Engenharia de Manutenção, com dotação orçamentária e equipe especializada própria que “acompanharia a obra de ponta a ponta”, objeto do projeto de lei em elaboração. A proposta de instituir tais órgãos nas três esferas de governo de modo a evitar desastres e garantir segurança à população em todo o Brasil consta do projeto “Cresce Brasil + Engenharia + Desenvolvimento”, iniciativa da FNE com a adesão do sindicato.
Os dirigentes do sindicato apresentaram avaliação técnica na audiência pública que contribuiu decisivamente para os encaminhamentos no ensejo, que devem ainda resultar na constituição de uma comissão mista parlamentar – municipal e estadual, com participação da sociedade civil organizada – para acompanhar as investigações das causas do acidente. A apuração está a cargo do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). É também objeto de inquérito civil instaurado pela 5ª. Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo do Ministério Público do Estado de São Paulo.
Avaliação técnica
Entre as hipóteses apontadas por especialistas para o acidente na Linha 6 está a de que uma regra básica não foi seguida: manter uma distância segura de aproximadamente 20 metros entre o shield (tatuzão) e adutoras ou interceptores de esgoto. A passagem do equipamento pode causar movimentação no terreno e, assim, no caso, ter culminado com a ruptura do coletor. Segundo declarações à imprensa tanto do secretário estadual dos Transportes Metropolitanos de São Paulo, Paulo José Galli, quanto do presidente da Acciona, André de Ângelo, a tuneladora estava a apenas três metros de profundidade da galeria.
Ernesto González, delegado sindical do SEESP na Sabesp, destacou durante a audiência pública que o interceptor de esgoto em questão foi construído em 2018 “para atender inclusive demandas futuras”, sem quaisquer registros de problemas antes do acidente. “A vibração que o tatuzão causa é enorme. Três metros abaixo do nosso receptor é uma distância muito arriscada. A trepidação o abalou”, avaliou. Nada a ver com declarações misóginas nas redes sociais que tentavam responsabilizar mulheres engenheiras pelo acidente, o que mereceu o repúdio do sindicato e da audiência pública.
Engenheiro que atuou por 44 anos no Metrô-SP em projetos e coordenação de várias obras afins, Nestor Tupinambá, diretor do SEESP, relatou sua experiência durante a audiência pública: “Usamos, na Linha 5, injeção de cimento [sobre adutora] que resistiu à passagem do shield, o qual, quando avança, causa deformação do solo. Tem que prever isso.” Ele lembrou ainda que em obra na Linha 2, sobre a Avenida 23 de Maio, a regra básica de aproximadamente 20 metros indicada por especialistas foi seguida para evitar trepidação. Tupinambá destaca que, além de rebaixar o shield, soluções técnicas podem evitar acidentes como esse. Reforçar a galeria com injeção de cimento, tubo de aço ou estacas raiz, integrando-a à estrutura do metrô, são medidas de engenharia para tanto.
Presidente do Comitê Brasileiro de Túneis da Associação Brasileira de Mecânica dos Solos e Engenharia Geotécnica (ABMS), o engenheiro civil Eloi Angelo Palma Filho não enxerga a distância como um problema em si, mas pondera: “Quanto mais próximo, maiores os cuidados necessários.” Ele observa que a empresa Acciona declarou à imprensa que aplicara duas linhas de enfileiragem tubular metálica dentro do poço vertical abaixo do túnel do esgoto. “Seria uma proteção a mais.” E sublinha: “Ainda não dá para afirmar quais são as causas. É preciso ver se as premissas do projeto tiveram acompanhamento, se havia instrumentação do túnel, se havia indícios de algum mau comportamento.” Geralmente, ressalta o especialista, tais sinais antecedem acidentes como o da Linha 6.
Para evitar ocorrências afins, Palma insiste: “É necessário fazer um projeto adequado às necessidades e executar a obra de acordo.” Este inclui etapa de investigações geológico-geotécnicas. “A geofísica consegue identificar as condições do subsolo. Fazer um túnel em rocha muito dura é fácil e custa menos. Já o maciço pior pode ser vencido com solução técnica adequada. Isso é definido na fase de projeto”, ensina. Ele é categórico: “Túnel é uma estrutura segura. São cinco décadas de experiência do Metrô de São Paulo e muitos quilômetros construídos em área urbana e rural.”
Na cidade de São Paulo, completa, o comportamento do solo é bem conhecido. O geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos atesta e salienta que a região das obras da Linha 6 não é exceção. “Pelas primeiras informações, imagino que não foi um problema relacionado a questões geológicas ou geotécnicas. Se se confirmar essa hipótese de que a passagem do tatuzão rompeu a adutora ou coletora, foi um erro primário no plano de condução da obra, beira a irresponsabilidade”, afirma.
Sem surpresas
Encomendado pelo Metrô de São Paulo, o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) relativo à implantação da Linha 6 resultou em relatório (Rima) publicado em agosto de 2011, portanto, ainda antes da concessão. O documento indica que não havia surpresas quanto às vulnerabilidades: “Do ponto de vista de importância para a obra de implantação da Linha 6 – Laranja, destaca-se a presença na porção central do traçado projetado de uma grande área (ao longo do Rio Tietê) com potencial ocorrência de argilas moles e compressíveis. [...] Os problemas geotécnicos mais comuns nesta unidade são os processos de ravinamento [erosão hídrica] nos solos de alteração e, quando da presença de matacões [blocos de rochas], dificuldade de escavação e de cravação de estacas, recalques diferenciais e riscos de descalçamento e rolamento.”
No relatório, ainda, a partir da análise de variáveis topográficas, informações relativas aos aspectos geológico-geotécnicos e geomorfológicos e trabalho de campo, conclui-se por “potencial suscetibilidade à erosão dos terrenos da ADA [Área Diretamente Afetada] e seu entorno imediato”.
Além das fragilidades no terreno a serem vencidas, também houve alertas quanto à modelagem adotada. Em 2018, diante do impasse com a paralisação das obras da Linha 6 por quase dois anos então a cargo do Consórcio Move São Paulo, engenheiros e população afetada chegaram a reivindicar que o Governo do Estado assumisse a execução e operação da linha.
À época, Tupinambá fez uma observação que agora, diante do acidente, poderia ser apresentada como crônica de um desastre anunciado: “Muitas estações previstas terão escavações muito profundas, com mais de 50 metros abaixo da terra, o que, além de encarecer o projeto, requer mão de obra muito especializada, como a dos engenheiros do Metrô.” A companhia, como observa Emiliano Stanislau Affonso Neto, também diretor do SEESP, “é referência internacional”. Ele ressalta que “uma boa mobilidade é muito importante para o desenvolvimento da cidade e qualidade de vida das pessoas”. Por ser essencial, continua, “em muitos locais no mundo, está a cargo de empresas públicas”.
Enquanto a investigação das causas do acidente na Linha 6 está em andamento, lições já podem ser assimiladas, para que a população paulista não mais amanheça assombrada com uma gigantesca cratera em uma de suas principais vias de circulação, felizmente sem vítimas.
Não obstante, os impactos socioeconômicos e ambientais seguem a ser sentidos. Além do prejuízo à mobilidade na cidade, segundo reportagem publicada no portal IG em 4 de fevereiro, com base em estimativa inicial apresentada pela Sabesp de 170 milhões de litros de esgoto a serem bombeados, o volume liberado “daria para encher 68 piscinas olímpicas”. Drenagem está em curso pela empresa de saneamento, que realiza no entorno obras para desvio da tubulação atingida com o desmoronamento na Marginal Tietê, não sem percalços. No dia 22 de fevereiro, uma explosão feriu três trabalhadores em função de acúmulo de gás no local. Engenharia de manutenção está na ordem do dia.
Imprensa Seesp
Anexo: Flickr/Governo do Estado de São Paulo / Arte: Eliel Almeida