Editada em 6 de julho último pelo governo federal, a Medida Provisória 844 altera o marco legal do saneamento no Brasil, estabelecido na Lei 11.445/2007, favorecendo a privatização no setor e praticamente eliminando a possibilidade de universalizar os serviços que são fundamentais ao desenvolvimento e à saúde pública. A avaliação é do presidente do Sindicato dos Engenheiros do Estado do Piauí (Senge-PI) e diretor da FNE, Antonio Florentino de Souza Filho.
A apreensão do engenheiro é geral entre sanitaristas e entidades do setor e tem motivado mobilizações contrárias à medida, como as realizadas em 31 de julho e 30 de agosto. Conforme a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes), o objetivo é impedir que a MP seja aprovada no Congresso Nacional e garantir que qualquer mudança na legislação vigente seja precedida de ampla discussão. “Levamos mais de 20 anos debatendo uma diretriz para o saneamento. Agora o Temer arma essa MP para detonar com a lei, sem transparência, sem revisão técnica e sem o devido debate qualificado”, condena o vice-presidente do Sindicato dos Engenheiros no Estado de Santa Catarina (Senge-SC) e da FNE, Carlos Bastos Abraham.
Também durante o mês de julho foi reivindicado por entidades do setor ao presidente do Congresso, senador Eunício Oliveira (MDB-CE), que o Legislativo devolvesse a MP à Presidência da República, pleito que não foi atendido. “Mostramos ao parlamentar que a matéria representa um retrocesso grave e perigoso. Só vemos uma saída: a reprovação do texto na íntegra”, defende o presidente da Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae), Aparecido Hojaij, que reforça: “Queremos o debate.”
O presidente da FNE, Murilo Pinheiro, mostra a inconveniência da matéria citando o “Ranking do saneamento”, editado pelo Instituto Trata Brasil neste ano. O estudo revela que, em 2016, havia 35 milhões de brasileiros sem acesso à água potável e mais de 100 milhões desprovidos de coleta de esgoto; somente 45% do esgoto gerado no País era tratado. “Esse cenário bastante negativo e que aponta necessidade de avanços significativos pode ser agravado pela MP 844”, destaca Murilo.
Modelo mercantil
Como explica o presidente da Abes, seção São Paulo, Márcio Gonçalves, hoje as empresas de saneamento e esgoto trabalham com o modelo do “subsídio cruzado”, quando os municípios mais viáveis economicamente subsidiam as obras nas cidades mais pobres. “A MP acaba com isso.” O mesmo receio é compartilhado por Murilo, para quem “tratar a área com tal lógica de mercado gerará uma disputa pelas cidades superavitárias, deixando as demais sem cobertura. Importante notar que, segundo dados da Abes, apenas 500 entre os mais de 5.500 municípios brasileiros podem gerar lucros na operação do saneamento ambiental. É de se perguntar qual será o destino dos demais”.
Hojaij amplia a crítica ao afirmar que a área não “pode virar um balcão de negócios” e deve ser tratada exclusivamente como política pública. “O saneamento ambiental – que abrange abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto e coleta e destinação adequada de resíduos sólidos – deve ser visto como uma política de inclusão social, porque, ao garantir saúde, temos menos doenças e crianças e adultos mais saudáveis”, defende.
Outro ponto polêmico da matéria, explicam Hojaij e Gonçalves, é o que torna a Agência Nacional de Águas (ANA) o órgão regulador do saneamento brasileiro. “Ela não tem a devida competência e capacidade para atuar num setor que envolve mais de 5 mil municípios. É uma centralização absurda para um país extenso e com tantas realidades diferentes”, observa o presidente da Abes-SP. A proposta governamental, prossegue, criará confusão também nas regiões metropolitanas, hoje pacificadas a partir de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2013, em julgamento de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), pela gestão compartilhada entre o estado-membro e os municípios integrantes. “A MP traz uma divisão e não especifica como será essa gestão. Desorganiza tudo de novo.”
Hojaij destaca ainda a total falta de pertinência da medida tomada pelo governo, especialmente tendo em vista o movimento de reestatização do setor de saneamento observado no mundo, com o fim da privatização em mais de 200 cidades. “O caso mais emblemático é o de Paris, que chegou a ser o símbolo da onda privatista do setor, mas cujo serviço voltou às mãos do poder público municipal.” E completa: “O que precisamos é de recursos públicos para a expansão dos serviços, com linhas de crédito de fácil acesso e menos burocracia.”
A MP 844 já tem comissão mista no Congresso Nacional e 525 emendas; até o dia 24 de agosto, ainda não tinha presidência e relatoria definidas. A vigência da matéria termina em 20 de setembro próximo e, conforme site do Senado, é prorrogada automaticamente por igual período (60 dias), caso não tenha sua votação concluída. As entidades prometem fazer muito barulho e trabalho de esclarecimento junto aos parlamentares.