Pela terceira vez em três anos, o poder Executivo envia ao Congresso Nacional a proposta de privatização da Eletrobras e ameaça colocar em disputa no mercado o destino da maior holding de energia da América Latina. A Eletrobras responde por 31% da geração de energia no Brasil e por 47% da transmissão.
Isso significa que a sociedade brasileira tem sido continuamente obrigada a se mobilizar em defesa de sua soberania energética frente a sucessivas pressões do governo, desde o início de 2018, tornando-se motivo de constantes movimentações da Federação Nacional dos Engenheiros (FNE) e suas bases sindicais, ao lado de entidades do setor e frentes parlamentares, para impedir a perda de controle estatal sobre a empresa.
A importância tecnológica da Eletrobras é outra característica que fica ameaçada com a transferência do controle acionário para o capital privado. Como aponta José Antonio Latrônico Filho, diretor do Sindicato dos Engenheiros de Santa Catarina (Senge-SC) e presidente da Associação Brasileira de Engenheiros Eletricistas (ABEE), “o sistema de transmissão brasileiro trouxe um grande avanço tecnológico ao País. É característica nossa a transmissão de energia de longa distância, de corrente contínua”.
A tentativa de entrega da empresa, dessa vez, se apresenta por meio de Medida Provisória que tem força de lei, permitindo que comecem os estudos para a emissão de novas ações que a União não poderá comprar, de modo a perder a condição de acionista majoritária, ficando abaixo dos 50% que detém hoje. Para que a venda comece, a MP precisará ser aprovada pelo Congresso, como prevê o próprio texto da medida, deixando aos parlamentares a responsabilidade de decidir sobre a questão estratégica do controle energético nacional em um momento em que todos os esforços deveriam estar concentrados na proteção da população brasileira contra a pandemia de covid-19 e seus impactos sobre a economia. Por isso, vários parlamentes protocolaram na Câmara dos Deputados o pedido para que a Medida Provisória seja devolvida ao governo.
Pelo texto, nenhum acionista poderá ter mais de 10% do capital votante da Eletrobras. Caberá à União uma golden share – ação de classe especial que lhe garante poder de veto em decisões consideradas estratégicas. E a Eletrobras privatizada pagará à União bonificação pela outorga. A bonificação é uma oferta financeira feita pelo novo concessionário em troca da concessão.
Conforme a MP, metade do valor pago entrará como receita nos cofres públicos. Outra metade será depositada na Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), responsável por vários subsídios presentes na conta de luz. A injeção de recursos visa reduzir as tarifas pagas pelos consumidores.
No entanto, a privatização vai requerer a descotização de 15 usinas hidrelétricas que vendem energia bem mais barata que o barato. A Aneel aponta que uma privatização da Eletrobras pode elevar a conta de luz em até 16,7 num primeiro momento.
Tarifas altas e apagões têm marcado as privatizações das distribuidoras de energia elétrica no Brasil, com sérias consequências para as populações dos estados de Goiás, Acre, Rondônia, Roraima, Amazonas, Piauí e Alagoas, que penam com o descaso na prestação de serviço privatizado. O Amapá foi o mais dramático e escandaloso exemplo do descaso, com um apagão que durou 20 dias, nas mãos de uma transmissora de energia privada.
O que mais diz a MP
A Cãmara dos Deputados aponta outros quatro mudanças incluidas na MP:
- Se a operação de vendas de ações não conseguir diluir o capital da Eletrobras para pelo menos 10% por acionista (ou bloco de acionista), poderá ser realizada uma nova operação;
- A privatização da estatal será acompanhada pela renovação dos contratos de concessão das usinas hidrelétricas da Eletrobras por 30 anos, que se tornarão produtores independentes, com liberdade para negociar os preços no mercado, mas responsabilizando-se pelos riscos associados à falta de chuvas;
- Será criada uma estatal (empresa pública ou sociedade de economia mista) para administrar a Eletronuclear, que controla as usinas de Angra e a Itaipu Binacional. Por questões constitucionais, ambas devem ficar sob controle da União.
- A Eletrobras manterá, por quatro anos, o pagamento das contribuições associativas ao Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (Cepel), mas com valores decrescentes. O Cepel é uma associação civil sem fins lucrativos que realiza pesquisas e desenvolvimento (P&D) em energia elétrica.
Três anos de tentativas
Desde o início de 2018, com o primeiro projeto de lei (PL 9463/18), enviado ao Congresso pelo então presidente Michel Temer, a FNE e suas bases, ao lado de entidades do setor de energia, vem lutando contra a entrega da empresa. O projeto chegou a ser discutido em comissão especial, mas, sob pressão da sociedade, não foi votado. A FNE posicionou-se em seu X Conse, com moção conjunta com a ABEE, propondo a restruturação da empresa.
Em novembro de 2019, já no governo de Jair Bolsonaro, novamente as entidades precisaram se mobilizar para impedir a votação de um novo projeto de venda da empresa, o PL 5877/19.
Nesse período, a principal estatal do setor elétrico do país veio aplicando programas de redução de custos e de corte de funcionários, para facilitar o processo de venda total da Eletrobras para o capital privado.