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É de recente lembrança o ataque sofrido pelos direitos laborais durante o governo de Fernando Henrique Cardoso – FHC, de forma mais intensa no final de seu segundo mandato com a tentativa de aprovar projeto de lei que visava introduzir, nas relações de trabalho, o conceito do “negociado sobre o legislado”.

Foi intensa a luta travada por entidades sindicais, movimento social e membros de instituições públicas que atuam na esfera trabalhista com vistas ao afastamento da ameaça neoliberal.

Não sem alguma surpresa, nos deparamos, em pleno governo de Dilma Rousseff, com o retorno da mesma propositura, desta vez ainda mais ameaçadora aos direitos dos trabalhadores.

A leitura das citações abaixo nos ajudará a melhor compreender a questão:

“Criada na antevéspera do final do primeiro ciclo da Era Vargas, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) cumpriu missão fundamental ao regular as relações entre trabalhadores e empregadores em um país que ensaiava os passos na construção de uma economia industrializada, moderna e diversificada.

Sete décadas depois, as aceleradas transformações que ocorrem em nível global mostram que o mundo das relações trabalhistas cobra da sociedade um novo olhar, contemporâneo, compromissado com o futuro e sustentado por políticas públicas e empresariais objetivas, capazes de abrir oportunidades para um maior número de brasileiros “. (Neves. Aécio. Jornal Folha de São Paulo. 08 de julho de 2012.)

“Como faca de dois gumes, a CLT acerta quando fixa patamares básicos para regular uma relação que sempre foi muito desigual entre capital e trabalho, posicionando- se em favor do mais fraco. Confere ao Poder Judiciário instrumentos para assegurar um mínimo de equilíbrio numa anteposição que tradicionalmente é muito desequilibrada. Mas a lei tolhe a autonomia dos trabalhadores e empresários, impondo uma tutela do Estado, que como toda tutela, se converte em barreira para o estabelecimento de um equilíbrio mais consciente.

Afora isso, é da mais absoluta sensatez reconhecer que uma lei datada dos anos 1930 e 1940 não consegue responder de forma adequada ao cenário de um país que viveu mudanças profundas em sua economia, organização social e vida política”. (Cartilha ACE – Acordo Coletivo Especial. Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, pag. 13 e 18)

As citações, embora possam parecer fazerem parte de uma mesma matriz ideológica, não se filiam historicamente a linhas de pensamento que possuam qualquer identidade, muito pelo contrário. As mudanças próprias do avanço das sociedades permitem a evolução de conceitos, paradigmas e, não raro, a formação de consensos. A primeira citação, da lavra de um dos maiores líderes da oposição no Brasil, o Senador Aécio Neves (PSDB), representa o pensamento histórico de seu partido e do patronato brasileiro. A segunda citação consta de documento (cartilha), produzido pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, onde se apresenta e empreende a defesa de minuta de projeto de lei que visa elastecer as possibilidades da negociação coletiva entre trabalhadores e empregadores.

Como já dito, surpreende o fato de que uma entidade sindical intimamente ligada ao movimento que levou ao fim da ditadura militar, ao nascimento de um sindicalismo vigoroso e independente (Central Única dos Trabalhadores - CUT) e à formação de um partido político com bases neste movimento sindical e nos setores mais mobilizados da sociedade formule e apresente uma proposta de mudança na legislação laboral que mais do que repetir aquele ataque ao direito do trabalho intentado pelos setores conservadores na década de 90, em sua essência, acaba por aprofundá-lo.

Lendo a cartilha onde se apresenta e defende a minuta do projeto de lei, observa-se a fragilidade nos argumentos, nos permitindo afirmar que esta última proposta em nada se distingue daquela primeira. E, o mais grave, é apresentada por uma entidade sindical que possui enorme representatividade e respeitabilidade social, trazendo a enganosa perspectiva de que a proposta agora reapresentada possua algum grau de segurança para os trabalhadores.

Este artigo tem o objetivo de tentar fazer uma crítica à recente proposta de mudança na legislação trabalhista contida na minuta do projeto de lei apresentado pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, tendo como perspectiva o fenômeno das políticas liberais flexibilizadoras e precarizantes vivenciadas nas últimas décadas.

2 – A Flexibilização ou Precarização das Legislações Laborais como Instrumento de Combate ao Custo das Empresas

Tem-se observado, nas últimas décadas, no âmbito das relações laborais, a imposição de uma estratégia de cunho patronal cujo objetivo é, em sua essência, a diminuição do chamado “custo trabalhista”. Fundamentada na ideia de que as legislações laborais são de conteúdo arcaico, ultrapassado e que não se coadunam com a nova dinâmica vivenciada pelo sistema capitalista, seus defensores têm, ao longo dos anos, defendido a revisão ou superação de tais legislações. O conjunto das formulações que embalaram esta estratégia de cunho neoliberal e precarizante sempre tiveram o apoio de amplos setores da chama “inteligência”, bem como dos mais variados meios de comunicação.

No Brasil, no final do governo FHC, o Ministro do Trabalho Francisco Dornelles se empenhou na aprovação do Projeto de Lei 5.483/01, que admitia uma flexibilização mais ampla da legislação trabalhista, dando nova redação ao art. 618 da CLT, fazendo prevalecer o negociado sobre o legislado, ressalvados os direitos constitucionais mínimos, lei complementar, Programa de Alimentação do Trabalhador-PAT, vale transporte, FGTS e as normas de medicina e segurança do trabalho. O texto aprovado pela Câmara dos Deputados tinha a seguinte redação:

“Art. 618. Na ausência de convenção ou acordo coletivo firmados por manifestação expressa de vontade das partes e observadas as demais disposições do Título VI desta Consolidação, a lei regulará as condições de trabalho.

§ 1o A convenção ou acordo coletivo, respeitados os direitos trabalhistas previstos na Constituição Federal, não podem contrariar lei complementar, as Leis no 6.321, de 14 de abril de 1976 (relativa ao programa de alimentação do trabalhador), e no 7.418, de 16 de dezembro de 1985 (relativa ao vale-transporte), a legislação tributária, a previdenciária e a relativa ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, bem como as normas de segurança e saúde do trabalho.

§ 2o Os sindicatos poderão solicitar o apoio e o acompanhamento da central sindical, da confederação ou federal a que estiverem filiados quando da negociação de convenção ou acordo coletivo previstos no presente artigo”.

No entanto, a resistência de parlamentares e sindicalistas à prevalência do negociado sobre o legislado foi enorme, provocando amplas mobilizações, quer dentro do Congresso Nacional, quer nas ruas, com passeatas em defesa da CLT em sua integralidade. Apesar disso, no dia 4 de dezembro de 2001, foi aprovado pela Câmara dos Deputados o referido projeto de Lei no 5.483/01. Os adversários do projeto sustentavam que a filosofia da flexibilização nele inserida constituiria verdadeira derrocada de conquistas trabalhistas obtidas à duras penas, fragilizando-se o sistema protetivo insculpido na CLT. Ademais, em um país de sindicalismo fraco, onde apenas algumas categorias melhor organizadas poderiam fazer frente à pressão econômica do setor patronal, seria uma temeridade abandonar os trabalhadores nas mãos de entidades sindicais que não têm condições de defender os seus interesses deforma satisfatória. Com a eleição do Presidente Lula, o PLC134/01 (número que recebeu o PLS.481/01 no Senado Federal) foi retirado pelo novo governo, na esperança de que se conseguisse, como "Fórum Nacional do Trabalho", um consenso quanto à reforma em pontos específicos da CLT, assim como quanto à questão da flexibilização e de seus limites.

Ocorre que o referido Fórum não teve como consequência a apresentação de consensos que legitimassem qualquer mudança mais profunda no ordenamento jurídico trabalhista.

Nem bem terminado o segundo mandato de Lula, eis que a questão retornou não sob uma nova roupagem, mas sendo apresentada por um novo ator social. A ideia antes defendida pelo Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB e seus aliados partidários e sindicais, agora é propugnada pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, referência na luta histórica dos trabalhadores nas últimas décadas.

Não se percebeu no Brasil tamanha mudança no contexto econômico, sindical e social que permitisse a apresentação de uma proposta de flexibilização nos moldes daquela anteriormente objeto de tanta polêmica no fim do governo FHC. Apesar dos avanços econômicos, inegáveis no período posterior, não vislumbramos no mundo do trabalho a realização de mudanças que tenham modificado a correlação de forças há muito tempo já existentes entre trabalhadores e empregadores. O cenário traçado pelo Sindicato dos Metalúrgicos na cartilha apresenta uma proposta bastante distante do que se tem no contexto fático.

Não se nega que a realidade dos metalúrgicos de alguns estados brasileiros, não todos, seja bem distinta daquela vivida pela maioria dos trabalhadores brasileiros. Se a correlação de forças existente entre trabalhadores (sindicatos) e patrões no ABC paulista permite a supressão de garantias laborais previstas na legislação ordinária com vistas a maiores conquistas no processo negocial. Entretanto, nada garante que os demais trabalhadores estejam neste mesmo patamar e que seus direitos não possam ser precarizados, projetando um futuro com diferenças abissais de direitos usufruídos.

Principalmente na última década, com a eleição de Lula, ex-presidente do sindicato proponente, a representação sindical desse setor ganhou forte poder político e econômico. Indicou ministros, influiu na política econômica e garantiu fortes recursos públicos direcionados ao setor base da atividade econômica, o setor automotivo.

Entretanto, querer projetar tais condições ao conjunto das atividades econômicas e às demais representações sindicais nos parece um grave erro. Ao contrário do que imaginam os formuladores da cartilha e da minuta do projeto, estamos ainda muito distantes da existência de democracia nas relações de trabalho e, principalmente, distantes das condições materiais e jurídicas para efetivá-la.

3 – Os Novos Fundamentos para a Defesa do Negociado sobre o Legislado

Como aqui já foi dito, surpreende o fato de que surja de uma entidade do setor historicamente mais combativo do movimento sindical uma proposta que ressuscita a linha do “negociado sobre o legislado”.

Uma leitura atenta da cartilha talvez nos possa ajudar no entendimento da proposta apresentada. Em primeiro lugar, merece destaque o fato de que a entidade sindical elaborou uma cartilha, que mais parece uma peça publicitária quando se utiliza, para ajudar a vendê-la, a imagem do ex-presidente Lula e sua esposa Marisa Letícia. Tais fotos possuem o sentido de projetar no discurso, a tese de que no governo Lula teriam sido criadas as condições para a reapresentação, com segurança, do conceito do “negociado sobre o legislado”.

Mais ainda, faz um contraponto entre o movimento sindical que faz a defesa de tais mudanças e outro que seria contrário à mesma. Assim afirma a cartilha:

“Outra cultura ainda presente é a de priorizar na vida sindical a denúncia ideológica das injustiças presentes no sistema capitalista, pondo em segundo plano os interesses imediatos dos trabalhadores. Existe um sindicalismo que é combativo no discurso e se apresenta como revolucionário, mas que acaba não acumulando as forças necessárias para obter conquistas salariais e construir relações de trabalho mais democráticas. Apega- se a dogmas teóricos e termina caindo num outro tipo de conservadorismo – tão prejudicial quanto o velho peleguismo – quando rejeita inovações que os tempos atuais exigem”. (Cartilha ACE – Acordo Coletivo Especial. Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, pag. 29.)

A crítica feita atingiria, no passado, o próprio Sindicato dos Metalúrgicos e todo o movimento que lutou em 2001 contra o Projeto de Lei 5.483/01. Ao contrário do afirmado, não nos parece que a denúncia das injustiças presentes no capitalismo seja uma característica negativa do movimento sindical. Aliás, foi com tal prática que a referida entidade sindical ajudou o país a derrubar um regime militar, constituir uma forte e combativa central sindical e, ainda, fundar um partido político com forte base sindical e social.

Não resta dúvida de que, com a eleição de Lula, este movimento sindical combativo inaugurou uma legitima participação no governo que se iniciou, não só na figura de Luís Inácio, antigo presidente da entidade, mas também com a indicação de ministros, presidentes de estatais, membros de segundo escalão, etc.

Ao que parece, imagina-se que a forte participação no governo Lula e Dilma por esta parte do movimento sindical seja condição suficiente para afastar das relações de trabalho a histórica desigualdade na correlação de forças existente. Ao contrário, apesar de possuir forte participação no governo, esta ala do movimento sindical não foi sequer capaz de garantir que a Convenção n. 87 da OIT fosse ratificada pelo Brasil.

A ratificação pelo Brasil desta Convenção até hoje não se operou, apesar das ideias e condições existentes para a negociação apontada pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Não há dúvidas de que uma verdadeira negociação só seria possível a partir da introdução ao ordenamento jurídico pátrio das garantias insculpidas pelo instrumento normativo internacional referido.

Dentre outros pontos relevantes, destacam-se, na Convenção n. 87, algumas garantias fundamentais à liberdade sindical e à proteção do direito sindical. A primeira destas garantias está contida no art. 2o da Convenção, que se passa a transcrever, in verbis:

"Art. 2o. Trabalhadores e empregadores, sem distinção de qualquer espécie, terão o direito de constituir, sem prévia autorização, organizações de sua própria escolha e, sob a única condição de observar seus estatutos, a elas se filiarem".

Refere-se à fundação do sindicato, ao direito de constituí-lo, sem qualquer intervenção do Estado. Conforme esta garantia, seria desnecessária e danosa a prévia autorização estatal para a criação de entidades sindicais ou para a filiação de seus associados.

A segunda garantia assegura aos sindicatos a autonomia administrativa, isto é, o direito de exercer suas funções segundo seus objetivos e a vontade de seus membros, sem sofrer qualquer interferência do Estado. Esta garantia está definida no art.3o da Convenção, que dispõe:

"Art. 3o. 1. As organizações de trabalhadores e de empregadores terão o direito de elaborar seus estatutos e regimentos, eleger livremente seus representantes, organizar sua administração e atividades e formular seus programas de ação.

2. As autoridades públicas abster-se-ão de qualquer intervenção que possa limitar esse direito ou cercear seu exercício legal."

A ratificação da Convenção 87 da OIT não se trata de providência de caráter ideológico ou simbólico. Não se pode garantir que empregados e patrões possam negociar sem as garantias mínimas contidas neste instrumento internacional. Imaginar que a circunstancial existência de um governo com participação e compromissos sindicais supra tal carência parece constituir verdadeiro delírio.

Tentando se distinguir daquelas formulações de cunho precarizador do período FHC, assim sustenta a cartilha do sindicato proponente:

"A saída verdadeira é trabalhar por mudanças capazes de quebrar o gesso das leis arcaicas, sem esquecer as condicionantes necessárias para impedir qualquer precarização nas relações de emprego, como foi moda nos anos de 1980 e 1990, no apogeu das chamadas políticas neoliberais”.(Cartilha ACE – Acordo Coletivo Especial. Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, pag. 36)

Como já salientado, a proposta parte do pressuposto de que as mudanças ocorridas no governo Lula e sustentadas no governo Dilma lançaram as condições para mudanças legais que garantem aos trabalhadores, por meio de suas entidades, entabularem processos negociais amplos com o setor patronal, imaginando-se a existência de uma nova correlação de forças entre patrões e empregados.

Tentando introduzir uma sensação de segurança à proposta apresentada, a cartilha indica a existência de um amplo e democrático processo de discussão que teria levado à sua elaboração. Afirma:

“A formulação desta nova proposta levou em conta todas as recomendações e cautelas sugeridas pelas autoridades do Poder Judiciário já consultadas e que contribuem em sua elaboração. Requisitos e condicionantes rigorosos devem ser estabelecidos com clareza para que a liberdade conquistada reforce as relações democráticas entre capital e trabalho, trazendo mais dinamismo ao sistema produtivo nacional e desafogando a sobrecarga do Judiciário Trabalhista. As mudanças propostas não podem, em hipótese alguma, abrir as portas para que empresários ainda refratários à convivência democrática busquem, de forma oportunista, ampliar lucros predatórios, manipulando setores menos organizados da classe trabalhadora e intensificando a espoliação”.(Cartilha ACE – Acordo Coletivo Especial. Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, pag. 36.)

Impressiona como a proposta se aproxima daquele discurso nela mesmo combatido como sendo de caráter “ideológico”. Vejamos a seguir se a minuta de projeto formulado traz consonância com os conceitos contidos na cartilha e se traz, em seu bojo, as garantias mínimas aventadas.

4 – As Novas e Velhas Dimensões do Negociado sobre o Legislado

Feitas algumas considerações sobre a cartilha que apresenta a minuta do novo projeto de lei que trata do negociado sobre o legislado, cumpre-nos uma análise mais detalhada do referido projeto e a verificação de seu conteúdo.

O projeto é apresentado como possuidor de inúmeras virtudes, quais sejam: garante autonomia das partes, consubstanciada na possibilidade da organização sindical e negociação por local de trabalho; adesão voluntária, permitindo o estabelecimento de normas condizentes com o local de trabalho; representatividade e responsabilidade que se corporificará por duas condicionantes: a) somente sindicatos habilitados pelo Ministério do Trabalho e Emprego poderão negociar e, b) somente empregadores que não sofram condenações judiciais por práticas anti-sindicais e habilitam ao processo negocial. E, por fim, salienta-se a vantagem da segurança jurídica que adviria do resultado das negociações.

Vejamos se tais virtudes encontram sustentação no texto sugerido ou se, não se perdem como mero discurso de caráter “ideológico”. A minuta de projeto ao tratar do Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico, essência do projeto, assim estabelece seus fundamentos:

“Art. 2o. Para os fins desta Lei considera-se:

(...)

II - Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico, o instrumento normativo por meio do qual o sindicato profissional, habilitado pelo Ministério do Trabalho e Emprego e uma empresa do correspondente setor econômico, estipulam condições específicas de trabalho, aplicáveis no âmbito da empresa e às suas respectivas relações de trabalho;

III - Condições específicas de trabalho, aquelas que, em decorrência de especificidades da empresa e da vontade dos trabalhadores, justificam adequações nas relações individuais e coletivas de trabalho e na aplicação da legislação trabalhista, observado o art. 7o da Constituição;

(...)

V - habilitação, a certidão expedida pelo Ministério do Trabalho e Emprego que credencia o sindicato profissional para a negociação de Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico”. (Cartilha ACE – Acordo Coletivo Especial. Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, pag. 46.)

Sobressaem-se, no presente dispositivo, duas questões preliminares da maior importância. A primeira se refere ao alcance dos dispositivos legais passíveis de negociação. Note-se que este ponto foi um dos mais polêmicos quando da tentativa de aprovação do princípio do negociado sobre o legislado, no governo FHC por intermédio do Projeto de Lei 5.483/01, onde se garantia, como agora, que a negociação coletiva não avançaria sobre direitos elencados no artigo 7o da Constituição Federal.

Não se pode esquecer que a quase totalidade dos direitos trabalhistas presentes no referido dispositivo constitucional ali figuram de forma enunciativa. A maneira como os mesmos serão usufruídos está definida na legislação ordinária. Assim, a menção ao artigo 7o não representa, em si, nenhuma garantia de não negociação de tais direitos.

Somente para exemplificar, mencionemos alguns direitos que mesmo tendo garantia constitucional, teriam importantes aspectos passíveis de negociação: Férias: redução do período para 10 ou 15 dias e forma de pagamento; Repouso semanal: exclusão do cálculo das horas extraordinárias; 13o salário: pagamento em parcelas mensais; Aviso prévio: redução do período para 15 ou mesmo 8 dias; Adicional noturno: redução para 10% ou mesmo 5%; Pagamento de salário: do quinto dia útil para o 10o e até o 15o dia; Quitação dos direitos: para qualquer outro prazo daqueles fixados no art. 477, § 6o, alíneas a e b da CLT; Jornada de trabalho noturno: a hora do trabalho noturno, que era de 52 minutos e 30 segundos e correspondia a uma jornada diária que durava 7 horas, passa a ser de 60 minutos, equivalendo, assim, a uma jornada de 8 horas por dia. Aliás, por não figurar no art. 7o, até o direito à estabilidade no emprego, notadamente a hipótese prevista no inciso VIII do art. 8o Carta Constitucional (dirigente sindical) seria passível de negociação.

Como se vê, admitindo-se a aprovação do projeto, estaríamos ferindo de morte as garantias constitucionais, já que a Carta adotou o princípio da ampliação ou melhoria dos direitos trabalhistas em seu art. 7o, não havendo assim de se falar em redução dos direitos sociais dos trabalhadores, e ao princípio da legalidade (art. 5o, I, CF), prelecionado pelo Estado democrático de Direito brasileiro, devendo sempre prevalecer a lei sobre a vontade entre as partes e não o convencionado sobre o legislado.

No que diz respeito à organização sindical, o que o constituinte pretendeu foi deixar livre para a entidade sindical sua criação, composição e extinção, dentro da conformidade do direito privado. Assim, para sua fundação não mais é necessária a famigerada autorização do Estado, através da Carta Sindical.

Nunca é demais citar o inciso I do artigo 8a da Constituição Federal que assim estatui:

“I - a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical”

Parece-nos que, de alguma forma, a proposta ressuscita, mesmo que indiretamente, a intervenção do Estado sobre os sindicatos. A exigência de Certidão a ser expedida pelo Ministério do Trabalho como condição para que a entidade sindical esteja apta a negociar fere frontalmente o princípio da não interferência e intervenção nas organizações sindicais. De fato, teríamos dois tipos de organização sindical: as que teriam a referida Certidão e as que não a possuiriam, sendo que as últimas teriam o seu espectro de atuação limitado pela ação do Estado.

Reforçando ainda mais esta inconstitucional e descabida intervenção estatal sobre as entidades sindicais, assim define o artigo 4a da proposta:

“Art. 4o. É facultado ao sindicato profissional, devidamente habilitado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, a promover negociação coletiva com a finalidade de celebrar Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico”. (Cartilha ACE – Acordo Coletivo Especial. Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, pag. 47.)

Justifica-se tal propositura sob o argumento de que esta se constituiria em uma das garantias de que os trabalhadores não sofreriam prejuízos. Trata- se, a nosso ver, na melhor das hipóteses, de um verdadeiro delírio dos proponentes. Ao contrário de introduzir qualquer garantia, o que se estaria a produzir seria uma organização sindical ainda mais dependente dos favores do Estado. É de conhecimento amplo que a direção do Ministério do Trabalho e Emprego, nas gestões de FHC, Lula e Dilma, esteve sempre ao sabor das conveniências político-sindicais de tais governos. Ora predominam ali os interesses da Força Sindical ou da CUT. Ao sabor de tais influências, o que estaríamos a produzir seria uma organização sindical tutelada pelos interesses políticos da visão sindical que porventura estivesse ocupando o Ministério.

Surpreende ainda, que no campo das consideradas garantias esteja a condicionante de que somente podem efetuar as negociações aquelas entidades sindicais que apresentem número expressivo de filiados. Senão vejamos:

“Art. 9o. Para celebração do Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico o sindicato profissional e a empresa deverão atender as seguintes exigências:

O Sindicato Profissional:

(...)

c) contar com índice mínimo de sindicalização de 50% (cinquenta por cento) mais 1 (um) do total dos trabalhadores na empresa”.(Cartilha ACE – Acordo Coletivo Especial. Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, pag. 48.)

Ao que parece, estaremos diante de verdadeira indústria de sindicalizações. Não seria difícil imaginar um empregador que, ávido pela possibilidade da negociação, não criasse condições “especiais” que levassem à filiação em massa de seus empregados.

Outra importante garantia oferecida seria que a negociação somente se daria para o caso de o empregador possuir um histórico de relações respeitosas com a entidade sindical dos trabalhadores. Vejamos o que se propõe:

“Art. 9o. Para celebração do Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico o sindicato profissional e a empresa deverão atender as seguintes exigências:

II- A empresa:

(...)

b) não possuir qualquer pendência relativa à decisão condenatória transitada em julgado, cuja ação tenha sido promovida pelo respectivo sindicato profissional, por restrição ao exercício de direitos sindicais”.(Cartilha ACE – Acordo Coletivo Especial. Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, pag. 48)

Nada obsta que estejamos diante de empregadores que pratiquem trabalho escravo, explorem trabalho infantil, atrasem salários, não recolham FGTS, não garantam direitos relacionados à saúde e segurança e que, mesmo assim, apenas por não restringirem o exercício de direitos sindicais, estejam aptos à negociar. A tradução possível ao dispositivo sugerido é que, desde que as empresas tenham uma boa relação com a entidade sindical e sua atuação, os direitos trabalhistas podem ser suprimidos sem que isto represente qualquer dificuldade aos empregadores.

Naquilo que é apontado como segurança jurídica da propositura, destaca-se o contido no artigo 12:

“Art. 12. A Fiscalização do Trabalho, ao identificar condições de trabalho estabelecidas por Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico, deverá observar:

a) se as exigências para a celebração do acordo coletivo estabelecidas nas alíneas a) e b), inciso II, do artigo 9o desta Lei estão sendo mantidas;

b) se as condições de trabalho estão em consonância com o acordo;

§ 1o. Ao identificar condições de trabalho em desacordo com o instrumento normativo, o auditor fiscal consignará a manifestação da empresa no Auto de Infração.

§ 2o. O auditor fiscal, ao questionar condições de trabalho estabelecidas no instrumento normativo, comunicará o fato à sua chefia imediata que, se após análise da manifestação da empresa considerar que tais condições contrariam o disposto no art. 7o da Constituição Federal, determinará a lavratura do Auto de Infração”.(Cartilha ACE – Acordo Coletivo Especial. Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, pag. 49)

Não tem sido incomum que, ao introduzir medidas legais de caráter precarizador, membros de instituições de controle da aplicação da norma (Auditoria-Fiscal do Trabalho, Ministério Público e Poder Judiciário) atuem no sentido de não admitir tais medidas e punir aqueles que a utilizem em desrespeito aos direitos dos trabalhadores.

Nunca é demais lembrar o papel que tais instituições têm empreendido no combate às cooperativas fraudulentas, pejotização, terceirizações ilícitas. Tal atuação, não raro, é entendida pelo setor patronal como causa de forte insegurança jurídica.

Não é outro o propósito do dispositivo sugerido, que não o de impedir que a Auditoria-Fiscal do Trabalho, ao identificar atentado aos direitos trabalhistas, em especial aqueles constitucionalizados, não possa atuar de maneira plena. Cria-se de maneira pouco capciosa um controle da chefia sobre o livre convencimento do Auditor-Fiscal do Trabalho, passando àquela a capacidade institucional para considerar se, de fato, condições de trabalho pactuadas estariam contrárias ao art. 7a da Constituição Federal. Trata-se de medida descabida, que atenta contra dispositivos contidos na Convenção 81 da OIT – Organização Internacional do Trabalho, que estabelecem garantias mínimas para a atuação da inspeção do trabalho.

Como se vê, a propalada segurança jurídica da propositura dirige-se ao reforço dos interesses patronais em detrimento da segurança jurídica, que representaria a defesa dos direitos laborais. As mudanças de caráter precarizador são ainda mais abrangentes e profundas do que aquelas apresentadas no projeto proposto no final do governo FHC. Está, submete entidades sindicais à tutela e interesses governamentais por intermédio da descabida intervenção do Ministério do Trabalho e Emprego, além de obstaculizar a atuação da Auditoria-Fiscal do Trabalho no exercício de suas atribuições.

4 – Conclusão

Não tem sido raros, nas últimas décadas, os ataques à legislação laboral, bem como as tentativas de flexibilizá-la. Tais iniciativas sempre foram propostas por membros de partidos políticos ligados ao capitalismo e defendidas por economistas e estudiosos filiados ao pensamento neoliberal.

Mesmo considerando suas fragilidades, o movimento sindical, aliado a outros parceiros sociais e membros de instituições governamentais, foi capaz de impedir que tais propostas prosperassem. Não é com pequena surpresa que nos deparamos com a mais nova proposta que visa flexibilizar a legislação laboral por meio da negociação coletiva entre patrões e empregados, impondo- se o conceito do negociado sobre o legislado.

A surpresa não reside no fato de que tal proposta ressurja. A novidade reside em sua origem. Não se trata mais de uma proposta ligada aos partidos conservadores ou ao setor patronal. Pelo contrário, desta vez ela surge como sugestão do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, entidade que se constitui em importante referência histórica na luta dos trabalhadores. Este sindicato é intimamente ligado à própria existência da CUT, entidade que nas últimas décadas resistiu ao processo de precarização da legislação laboral.

Justificando-se em falsas premissas como a de que a eleição de Lula teria produzido um cenário no mundo laboral em que a correlação de forças exis

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