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Se a sociedade ainda tem dúvidas quanto à importância de se destinarem verbas públicas a pesquisa e desenvolvimento nas diversas áreas do conhecimento, a professora Mariana Moura rechaça com a mais fundamental das necessidades humanas: comida na mesa. “Só produzimos alimento no Cerrado com investimento pesado na área de agricultura e pecuária”, destaca.

MarianaMouraMariana Moura, fundadora do grupo "Cientistas engajados". Foto: Acervo pessoal

Graduada em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Belas Artes e mestre e doutora pelo Instituto de Energia e Meio Ambiente da Universidade de São Paulo (USP), ela faz o alerta diante dos cortes orçamentários em 2021 que atingiram em cheio o setor de ciência, tecnologia e inovação, com redução de 29% em relação a 2020.


Fundadora do grupo “Cientistas engajados”, a pesquisadora chama a atenção para os retrocessos quando se trata de alcançar a meta de alavancar o desenvolvimento nacional de forma qualificada. “Já fomos líderes mundiais na área de telecomunicações. A fibra óptica foi desenvolvida no Brasil, e hoje temos esse massacre dos cientistas brasileiros”, lamenta.

Em entrevista ao Jornal do Engenheiro, ela falou sobre esse panorama, que também afeta o Estado de São Paulo, detentor da melhor estrutura da área no País, mas enfrentando o sucateamento dos serviços públicos que fazem a ponte entre universidade e setor produtivo. Confira a seguir e no vídeo ao final.


Qual a sua avaliação do orçamento para C&T aprovado em 2021, com cortes da ordem de 29% em relação ao ano passado?
Primeiro, é preciso ponderar que todos os países desenvolvidos hoje investem muito em ciência e tecnologia. No momento em que aconteceu a crise de 2009, percebemos que era importante aumentar o índice de produtividade das economias e, para isso, era necessário investimento em C&T, especialmente em aplicações das novas tecnologias para o setor produtivo. Nós [no Brasil] fomos no sentido contrário. Isso não é só triste, é desesperador. Vemos que dificuldade a construção de um futuro para o nosso povo. Países como Coreia do Sul, China, Estados Unidos, Israel e Alemanha investem em torno de 2,5% a 4% do seu Produto Interno Bruto em C&T. Uma parte vem do setor privado, mas a maior parte vem do público. Muita gente falando sobre as vacinas contra o coronavírus. A da AstraZeneca teve investimento do governo inglês; a da Pfizer, dos Estados Unidos; a Coronavac, em parceria com a China, teve investimento do Estado de São Paulo. Já estávamos em situação de penúria no ano passado, porque vinha uma linha decrescente desde 2003 no financiamento, fechando laboratórios e centros de pesquisa, enviando nossos pesquisadores – muito bem formados – para fora do País. A ideia de que precisa investir mais em ciência e tecnologia para que se consiga chegar, de verdade, ao século XXI como país desenvolvido e soberano é fundamental.


Que reflexos a escassez de recursos para pesquisa tem sobre o País e a vida cotidiana da população?

MarinaMouraDestaque1A primeira coisa que se perdem são empregos, que estão indo para os lugares que investem em ciência e tecnologia. Para quem não conhece o setor de produção de conhecimento, um exemplo que eu costumo dar é que a falta de investimento em ciência e tecnologia diminui o arroz e feijão no prato, a comida na mesa. Só produzimos alimento no Cerrado com investimento pesado na área de agricultura e pecuária. E público, porque foi a Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa em Agropecuária] que desenvolveu a maior parte dessas pesquisas. Falta internet [também] nos seus equipamentos de transmissão. O mundo inteiro está caminhando para o 5G. Vamos desenvolver aqui ou comprar uma plataforma fora do Brasil, o que obviamente é mais caro. Já fomos líderes mundiais na área de telecomunicações. A fibra óptica foi desenvolvida no Brasil, e hoje temos esse massacre dos cientistas brasileiros, não só do ponto de vista do financiamento, mas também na retórica governamental, [segundo a qual] as universidades públicas são lugar de vagabundo. As instituições públicas de pesquisa no Brasil foram responsáveis pelo desenvolvimento não só da vacina, mas de uma série de soluções para produtos importados que não estavam mais disponíveis no mercado para resolver o problema da Covid-19, [como] máscaras, equipamento de proteção individual e os respiradores mais baratos. Cada real investido em pesquisa e desenvolvimento no Estado de São Paulo tem retorno financeiro de R$ 10,00 a R$ 12,00.


O primeiro chip brasileiro foi desenvolvido há 50 anos. Hoje, no entanto, o Brasil praticamente não tem indústria de semicondutores. Qual a dimensão desse problema?

Tem dois grandes problemas nessa dependência externa. O primeiro é o déficit comercial. Para importar esses equipamentos, do ponto de vista do comércio internacional, a gente tem que exportar uma quantidade grande de produtos. Como o que exportamos é [relativamente] muito barato, é matéria-prima, tem que exportar muito mais para ter superávit e fechar as contas, o que, durante toda a primeira década deste século, conseguimos em função do aumento nos preços internacionais. Mas isso não só não se manteve, como, se analisar historicamente, ao longo dos últimos 100 ou 200 anos, é muito raro esses preços estarem altos. Então, o primeiro problema é não ter dinheiro para importar. O segundo é ambiental. Para importar manufaturados, precisa exportar muita matéria-prima, o que significa extrair muito, o que é feito com baixo índice de tecnologia. O desastre de Brumadinho, aquela tragédia, é um exemplo clássico de extração irresponsável de recursos naturais para exportação. [Isso] diz respeito a essa lógica de desenvolvimento que o Brasil adotou [e tem como resultado] a ausência de uma indústria de microchips, de EPI [equipamentos de proteção individual], todas essas coisas que não são muito difíceis de fazer; exigem tecnologia, mas o Brasil dominou o ciclo do urânio, tem pesquisadores fantásticos.


A Universidade Federal do Rio Janeiro (UFRJ) fez um alerta quanto à sua difícil situação financeira, que pode inviabilizar o seu funcionamento. Sabe-se que o problema atinge também outras instituições. Quais seriam as consequências do fechamento dessas universidades?

MarianaMouraDesetaque2É preciso ressaltar que as instituições públicas de pesquisa, na maioria universidades, são responsáveis por mais de 90% da produção científica do nosso País. A situação da UFRJ é um atentado contra o futuro do Brasil. O Cenpes [Centro de Pesquisas, Desenvolvimento e Inovação Leopoldo Américo Miguez de Mello], principal laboratório da Petrobras, fica dentro da UFRJ. Foi lá que foi descoberto o pré-sal, uma das riquezas com mais potencial de produção. Não podemos deixar as instituições públicas de pesquisa irem pelo ralo. A gente precisa se organizar e defender com unhas e dentes, porque são imprescindíveis e fundamentais.


As universidades estaduais, que são muito relevantes em São Paulo, podem ter problema semelhante?

As universidades estaduais em São Paulo têm uma grande vantagem que é, dentro da Lei Orçamentária, um percentual do ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços] destinado a elas. Então temos uma situação um pouco mais confortável que as federais, que são financiadas fundamentalmente pelo Ministério da Educação.


Qual a situação do setor de ciência e tecnologia em geral no Estado de São Paulo?

MarchaPelaCiencia2019Os pesquisadores Walter Neves (IEA-USP), Mariana Moura e Ana Maria da Costa Ferreira (IQ-USP), durante a Marcha pela Ciência, em 2019. Foto: Acervo pessoalO Estado de São Paulo tem melhor infraestrutura de pesquisa do País. Tem uma série de escolas técnicas que proveem pessoal formado e qualificado para as instituições de pesquisa. Há as universidades públicas, não sós as três estaduais – USP, Unesp e Unicamp –, que são fantásticas, mas também as federais e as Fatecs [Faculdades de Tecnologia de São Paulo]; os institutos de pesquisa, que têm excelência na produção de tecnologia. E temos os parques tecnológicos, [embora] engatinhando, muitos com dificuldades. Porém, precisamos de reforço não só financeiro, mas de pessoal. Os institutos de pesquisa são a ponte que poderíamos ter entre a universidade, a ciência básica e o setor produtivo. Mas estão sendo sucateados há décadas. Para uma instituição como essa ficar sem pesquisadores é a morte. Não tem concurso público pelo menos desde o início da década. Temos dez anos de defasagem em que os atuais vão se aposentando e não entram novos. Mesmo que faça o concurso daqui a cinco anos, se não pegar os mais experientes, não forma os novos. Haverá um gap de conhecimento acumulado; isso é muito sério, essa descontinuidade na produção e na transmissão do conhecimento para as próximas gerações. E implica a dificuldade de realizar o trabalho: um pesquisador tem que fazer o trabalho de seis ou sete, não é assim que funciona. Outro problema é a falta de diálogo com o Governo do Estado de São Paulo. Há um processo de fechamento de vários institutos sem dizer aos pesquisadores para onde vão, como e se a sua pesquisa será realizada. É a política pública pensada e realizada por pessoas que não conversam ou não entendem como ela funciona. Esse é um dos motivos pelos quais criamos o “Cientistas engajados”. Precisamos articular melhor a ciência com o poder público e a sociedade para pensar soluções abrangentes e eficientes, em termos de recursos e resultados para a população.

Assista à íntegra da entrevista com Mariana Moura

Em entrevista ao Jornal do Engenheiro, ela falou sobre esse panorama, que também afeta o Estado de São Paulo, detentor da melhor estrutura da área no País, mas enfrentando o sucateamento dos serviços públicos que fazem a ponte entre universidade e setor produtivo. Confira a seguir e no vídeo ao final.


Qual a sua avaliação do orçamento para C&T aprovado em 2021, com cortes da ordem de 29% em relação ao ano passado?
Primeiro, é preciso ponderar que todos os países desenvolvidos hoje investem muito em ciência e tecnologia. No momento em que aconteceu a crise de 2009, percebemos que era importante aumentar o índice de produtividade das economias e, para isso, era necessário investimento em C&T, especialmente em aplicações das novas tecnologias para o setor produtivo. Nós [no Brasil] fomos no sentido contrário. Isso não é só triste, é desesperador. Vemos que dificuldade a construção de um futuro para o nosso povo. Países como Coreia do Sul, China, Estados Unidos, Israel e Alemanha investem em torno de 2,5% a 4% do seu Produto Interno Bruto em C&T. Uma parte vem do setor privado, mas a maior parte vem do público. Muita gente falando sobre as vacinas contra o coronavírus. A da AstraZeneca teve investimento do governo inglês; a da Pfizer, dos Estados Unidos; a Coronavac, em parceria com a China, teve investimento do Estado de São Paulo. Já estávamos em situação de penúria no ano passado, porque vinha uma linha decrescente desde 2003 no financiamento, fechando laboratórios e centros de pesquisa, enviando nossos pesquisadores – muito bem formados – para fora do País. A ideia de que precisa investir mais em ciência e tecnologia para que se consiga chegar, de verdade, ao século XXI como país desenvolvido e soberano é fundamental.


Que reflexos a escassez de recursos para pesquisa tem sobre o País e a vida cotidiana da população?

MarinaMouraDestaque1A primeira coisa que se perdem são empregos, que estão indo para os lugares que investem em ciência e tecnologia. Para quem não conhece o setor de produção de conhecimento, um exemplo que eu costumo dar é que a falta de investimento em ciência e tecnologia diminui o arroz e feijão no prato, a comida na mesa. Só produzimos alimento no Cerrado com investimento pesado na área de agricultura e pecuária. E público, porque foi a Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa em Agropecuária] que desenvolveu a maior parte dessas pesquisas. Falta internet [também] nos seus equipamentos de transmissão. O mundo inteiro está caminhando para o 5G. Vamos desenvolver aqui ou comprar uma plataforma fora do Brasil, o que obviamente é mais caro. Já fomos líderes mundiais na área de telecomunicações. A fibra óptica foi desenvolvida no Brasil, e hoje temos esse massacre dos cientistas brasileiros, não só do ponto de vista do financiamento, mas também na retórica governamental, [segundo a qual] as universidades públicas são lugar de vagabundo. As instituições públicas de pesquisa no Brasil foram responsáveis pelo desenvolvimento não só da vacina, mas de uma série de soluções para produtos importados que não estavam mais disponíveis no mercado para resolver o problema da Covid-19, [como] máscaras, equipamento de proteção individual e os respiradores mais baratos. Cada real investido em pesquisa e desenvolvimento no Estado de São Paulo tem retorno financeiro de R$ 10,00 a R$ 12,00.


O primeiro chip brasileiro foi desenvolvido há 50 anos. Hoje, no entanto, o Brasil praticamente não tem indústria de semicondutores. Qual a dimensão desse problema?

Tem dois grandes problemas nessa dependência externa. O primeiro é o déficit comercial. Para importar esses equipamentos, do ponto de vista do comércio internacional, a gente tem que exportar uma quantidade grande de produtos. Como o que exportamos é [relativamente] muito barato, é matéria-prima, tem que exportar muito mais para ter superávit e fechar as contas, o que, durante toda a primeira década deste século, conseguimos em função do aumento nos preços internacionais. Mas isso não só não se manteve, como, se analisar historicamente, ao longo dos últimos 100 ou 200 anos, é muito raro esses preços estarem altos. Então, o primeiro problema é não ter dinheiro para importar. O segundo é ambiental. Para importar manufaturados, precisa exportar muita matéria-prima, o que significa extrair muito, o que é feito com baixo índice de tecnologia. O desastre de Brumadinho, aquela tragédia, é um exemplo clássico de extração irresponsável de recursos naturais para exportação. [Isso] diz respeito a essa lógica de desenvolvimento que o Brasil adotou [e tem como resultado] a ausência de uma indústria de microchips, de EPI [equipamentos de proteção individual], todas essas coisas que não são muito difíceis de fazer; exigem tecnologia, mas o Brasil dominou o ciclo do urânio, tem pesquisadores fantásticos.


A Universidade Federal do Rio Janeiro (UFRJ) fez um alerta quanto à sua difícil situação financeira, que pode inviabilizar o seu funcionamento. Sabe-se que o problema atinge também outras instituições. Quais seriam as consequências do fechamento dessas universidades?

MarianaMouraDesetaque2É preciso ressaltar que as instituições públicas de pesquisa, na maioria universidades, são responsáveis por mais de 90% da produção científica do nosso País. A situação da UFRJ é um atentado contra o futuro do Brasil. O Cenpes [Centro de Pesquisas, Desenvolvimento e Inovação Leopoldo Américo Miguez de Mello], principal laboratório da Petrobras, fica dentro da UFRJ. Foi lá que foi descoberto o pré-sal, uma das riquezas com mais potencial de produção. Não podemos deixar as instituições públicas de pesquisa irem pelo ralo. A gente precisa se organizar e defender com unhas e dentes, porque são imprescindíveis e fundamentais.


As universidades estaduais, que são muito relevantes em São Paulo, podem ter problema semelhante?

As universidades estaduais em São Paulo têm uma grande vantagem que é, dentro da Lei Orçamentária, um percentual do ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços] destinado a elas. Então temos uma situação um pouco mais confortável que as federais, que são financiadas fundamentalmente pelo Ministério da Educação.


Qual a situação do setor de ciência e tecnologia em geral no Estado de São Paulo?

MarchaPelaCiencia2019Os pesquisadores Walter Neves (IEA-USP), Mariana Moura e Ana Maria da Costa Ferreira (IQ-USP), durante a Marcha pela Ciência, em 2019. Foto: Acervo pessoalO Estado de São Paulo tem melhor infraestrutura de pesquisa do País. Tem uma série de escolas técnicas que proveem pessoal formado e qualificado para as instituições de pesquisa. Há as universidades públicas, não sós as três estaduais – USP, Unesp e Unicamp –, que são fantásticas, mas também as federais e as Fatecs [Faculdades de Tecnologia de São Paulo]; os institutos de pesquisa, que têm excelência na produção de tecnologia. E temos os parques tecnológicos, [embora] engatinhando, muitos com dificuldades. Porém, precisamos de reforço não só financeiro, mas de pessoal. Os institutos de pesquisa são a ponte que poderíamos ter entre a universidade, a ciência básica e o setor produtivo. Mas estão sendo sucateados há décadas. Para uma instituição como essa ficar sem pesquisadores é a morte. Não tem concurso público pelo menos desde o início da década. Temos dez anos de defasagem em que os atuais vão se aposentando e não entram novos. Mesmo que faça o concurso daqui a cinco anos, se não pegar os mais experientes, não forma os novos. Haverá um gap de conhecimento acumulado; isso é muito sério, essa descontinuidade na produção e na transmissão do conhecimento para as próximas gerações. E implica a dificuldade de realizar o trabalho: um pesquisador tem que fazer o trabalho de seis ou sete, não é assim que funciona. Outro problema é a falta de diálogo com o Governo do Estado de São Paulo. Há um processo de fechamento de vários institutos sem dizer aos pesquisadores para onde vão, como e se a sua pesquisa será realizada. É a política pública pensada e realizada por pessoas que não conversam ou não entendem como ela funciona. Esse é um dos motivos pelos quais criamos o “Cientistas engajados”. Precisamos articular melhor a ciência com o poder público e a sociedade para pensar soluções abrangentes e eficientes, em termos de recursos e resultados para a população.

Assista à íntegra da entrevista com Mariana Moura

Rita Casaro/ Jornal do Engenheiro