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Cerca de 100 milhões de brasileiros vivem em imóveis urbanos irregulares. Essas unidades habitacionais correspondem a mais da metade do total existente no País.

Os dados apresentados pelo diretor de Assuntos Fundiários do Ministério das Cidades, Silvio Figueiredo, dão conta do cenário no qual foi aprovada a Lei 13.465, de 11 de julho último – oriunda da Medida Provisória 759/2016 –, relativa à regularização fundiária urbana e rural. Para o representante do órgão governamental, sob essa ótica, a norma “vem desburocratizar, agilizar e simplificar todos os procedimentos”. Para críticos, ameaça o interesse social e deve aprofundar conflitos pela terra no campo.

“Essa lei tem uma abrangência maior”, explica Figueiredo. Na anterior (nº 11.977/2009), a regularização só poderia ocorrer “em áreas urbanas ou de expansão urbana, criadas por planos diretores ou legislação específica”. Agora se estende a áreas da União e rurais, inclusive dentro da Amazônia. O diretor propugna que a limitação não dava conta do problema: “Temos hoje muitos núcleos ou assentamentos, vilas, vilarejos que estão distantes das áreas urbanas ou de expansão urbana. Isso acontece muito dentro da Amazônia legal ou no Nordeste, Norte do País. A nova legislação os chama de núcleos informais, e todos que têm usos ou características urbanas podem agora ser regularizados, não importa em que zona estejam.”

O conceito anterior era de “assentamento irregular” e agora, “núcleo urbano informal”. Conforme o diretor de Assuntos Fundiários do MinCidades, essa mudança também contribui para destravar a regularização, que pela lei de 2009 destinava-se apenas a unidades habitacionais, não considerando atividades econômicas no entorno, como comércio e serviços. “Tem-se no País cidades inteiras irregulares. Hoje, a regularização pode ser de todo o bairro, seja para uso residencial ou não.”

Outra alteração, ainda de acordo com ele, é quanto à regularização de interesse social ou específico. Como explica, a primeira só podia acontecer em núcleos há mais de cinco anos implantados, atendendo aos requisitos de usucapião urbano. “Eram chamadas áreas consolidadas, com mais de 50 habitantes por hectare. A nova legislação diz que quem determina isso é o município, através de um ato do Executivo. Simplificou-se esse tipo de classificação, que no fundo vai dizer quem pagará a conta. Quando é interesse social, todos os custos são do poder público.” Pela nova norma, os estados devem criar e regulamentar fundos à compensação total ou parcial da gratuidade. Modifica para tanto a lei do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), habilitando-o a destinar recursos a esses fundos.

Além disso, cria uma série de ferramentas, como o direito real de laje, que, conforme Figueiredo, visa simplificar a regularização no caso de casas sobrepostas dentro de um mesmo terreno. “Adaptamos a experiência do Código Civil Português e trouxemos para a nossa legislação. Agora é possível individualizar essas unidades.”

Para o engenheiro Carlos Augusto Ramos Kirchner, coordenador do Programa de Moradia Econômica (Promore) na cidade paulista de Bauru – instituído pelo Sindicato dos Engenheiros no Estado (Seesp) em vários municípios –, a lei tenta avançar ao instituir mecanismos para aperfeiçoar a regularização fundiária em situações específicas que contribuíam à manutenção de irregularidades, um “ponto de tensão social violento”.
Arquiteta do Departamento de Assuntos Fundiários da Prefeitura de Guarulhos, Diana Oliveira dos Santos afirma que na cidade paulista, que já conta com uma lei, os técnicos estão analisando caso a caso se é mais conveniente adotar a norma federal ou não. “A administração ou ente público responsável pode optar. Dependendo do processo, uma lei é mais conveniente que a outra.”

Medidas antiagrárias
Na concepção do professor de Pós-gradua­ção em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural da Universidade de Brasília (UnB), Sérgio Sauer, o principal objetivo é facilitar a titulação de terras, em favor do mercado. “Nada mais é do que um pacote de medidas antiagrárias”, resume. Nessa linha, ele afirma que “o texto final aprovado concentra as mudanças em processos de titulação – leia-se privatização dos lotes e desoneração do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) –, praticamente não apresentando ações para a criação de projetos de assentamentos, de arrecadação de terras griladas ou mesmo de reconhecimento de direitos territoriais”. Ao contrário, para Sauer, “facilita a mercantilização das áreas destinadas aos projetos de assentamentos já criados. Consequentemente, não resolve, mas aprofunda os conflitos de terras”.

Sob essa ótica, ele é categórico: “Há, com certeza, alguns elementos que poderia destacar como melhoras, mas o quadro geral é tão ruim que é até difícil elencar os principais retrocessos. Em todo caso, destaco, por exemplo, a mudança na Lei da Reforma Agrária, permitindo que as áreas desapropriadas (o valor da terra nua) sejam pagas em dinheiro pelo Incra, não mais indenizadas em título da dívida agrária (resgatável em alguns anos).” Ainda em relação às alterações nessa lei, o docente destaca: “Deve ser considerado consolidado o assentamento com 15 ou mais anos de implantação e os criados a partir de 2017, em três anos. Esse processo deverá acontecer independentemente de se as famílias tiveram acesso aos créditos de instalação e da condição de execução dos investimentos públicos. Na prática, significa que o Incra deixa de ter qualquer responsabilidade sobre o projeto. A desobrigação de qualquer tipo de assistência por parte do governo federal levará a uma maior precarização.”

A norma também altera, entre outros pontos, o chamado Programa Terra Legal, que, como detalha Sauer, “deveria regularizar a ocupação de terras públicas na Amazônia, elementos que deixam clara a lógica de uma ‘lei de grilagem’. Ou seja, legalização de ocupações ilegais e ilegítimas”.
Em “Carta ao Brasil” intitulada “A desconstrução da regularização fundiária no Brasil”, dezenas de organizações denunciam que a então “MP 759 rompe com vários regimes jurídicos de acesso à terra, construídos com participação popular. Promove a liquidação do patrimônio da União e coloca em risco a Floresta Amazônica. Promete falaciosamente algo que não vai cumprir, pois remete maior parte da matéria a regulamentações futuras” (leia na íntegra em https://goo.gl/USiyPM).