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Os desafios para a universalização do acesso à banda larga, o retrocessos nas políticas para o setor e o próprio modelo de Internet vigente no país e no mundo foram temas de debate nesta sexta-feira (13), em São Paulo. A discussão abriu o Seminário Internet, liberdade de expressão e democracia: desafios regulatórios para a garantia de direitos, promovido pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), como apoio do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).

A mesa de discussão contou com a presença da advogada e especialista em telecomunicações Flávia Lefèvre; o professor Marcos Dantas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); e de Alexander Castro, diretor de Regulamentação do Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviços Móvel Celular e Pessoal (SindiTelebrasil).

Em 2016, 36,7 milhões de domicílios brasileiros possuíam acesso à Internet, comenta Lefèvre. Mas a estatística não diz respeito apenas à banda larga fixa. A proporção de usuários que acessam a Internet pela rede móvel tem muita relação com a questão geográfica e de classe social, conforme explica a especialista. Para se ter ideia, 52% dos brasileiros estão conectados, sendo que apenas 30% têm acesso à Internet fixa. O índice de velocidade, vale recordar, é muito abaixo da média de outros países.

“76% das classes D e E usam a Internet apenas via rede móvel. Na classe C, são 46% nesta condição. São pessoas que contratam planos com franquias pequenas, insuficientes para sequer assistir a um filme”, pondera Lefèvre. “O problema é que quando acaba a franquia, há redução drástica da velocidade, mas ainda é garantido o acesso a aplicativos como o Facebook”.

 A este cenário, soma-se o fato de que, de acordo com pesquisas, 70% das notícias lidas na Internet são consumidas via Google ou Facebook. Por isso, alerta a advogada, muita gente tem confundido essas grandes corporações com a própria Internet. “Práticas de casamento entre provedores de conexão com provedores de plataforma têm sido consideradas ‘benéficas’ para o usuário no Brasil”, sublinha Lefèvre, lembrando que até o senado estadunidense, em audiência com Mark Zuckerberg, CEO do Facebook, nesta semana, criticou a prática.

Em retrospectiva, a representante da campanha Banda Larga é um Direito Seu recorda que a própria Constituição Federal de 1988 prevê que é papel da União garantir esses serviços. O Marco Civil da Internet vai além: sancionado em 2014 como uma espécie de Constituição da Internet no Brasil, o serviço foi definido como essencial. Ou seja, é um direito de todos os brasileiros, constituindo um serviço imprescindível para o exercício da cidadania.

Após alguns tropeços na missão de universalizar a banda larga no Brasil durante os governos de Lula e Dilma Rousseff, o retrocesso é iminente. Segundo Lefèvre, o PLC 79 , que libera as concessionárias para migrarem a telefonia para o regime privado, apenas aprofunda a privatização de algo que deveria ter caráter público. “Para nós, o regime público deve ser utilizado a depender do grau de essencialidade que o serviço representa, de acordo com características de localidades e natureza dos recursos utilizados para a sua implementação. Defendemos regime público para implementar banda larga nas periferias das grandes cidades, no interior do país e nas regiões mais pobres do Brasil”, defende.

Outro passo atrás é o corte brutal da verba para investimentos no setor. O orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), em 2016 e 2017, foi 50% menor do que em 2010. “Por conta do congelamento dos gastos públicos imposto pelo governo de Michel Temer, esse deverá ser o patamar de investimentos no setor daqui para frente”, frisa. Representando as empresas do setor, Alexander Castro elencou obstáculos para o desenvolvimento do setor. “Empresas de telecomunicações são reguladas pela Anatel e pelo Marco Civil da Internet. Por isso, creio que temos, sim, instrumentos para fazer essa regulação”, opina. “As telecomunicações precisam ser prioridade nas
políticas públicas do país”.

Castro relata que, em 20 anos de privatização do setor, a soma do investimento realizado pelas empresas bate a casa dos R$ 800 bi, gerando índice significativo de empregos. O representante do Sinditelebrasil critica, porém, a ineficácia da aplicação dos fundos de investimento no setor, como o Fundo de Fiscalização das
Telecomunicações (Fistel) e o Fundo de Universalização dos Serviços de
Telecomunicações (Fust).

Segundo ele, é preciso corrigir erros como, por exemplo, não haver obrigação de cobertura em estradas nos editais do setor. A tributação excessiva sobre a prestação de um serviço que é considerado essencial
também é um problema grave, em seu ponto de vista, como os leilões de caráter arrecadatórios.

“O desafio é fazer a inclusão digital da população que moram em regiões menos desenvolvidas e de pouca incidência no PIB do país”, aponta Castro. “Reduzir as igualdades regionais requer políticas públicas para isso. O Estado, a agência reguladora e o Ministério das Comunicações têm de investir em localidades onde a iniciativa privada não irá por vontade própria”. Para isso, complementa Castro, é preciso superar a fase de discussões infindáveis e buscar ações viáveis e juridicamente sustentáveis.

Regulação, um debate político

“Se um dia imaginamos uma Internet livre, aberta e horizontal, acabou. Isso estava em pauta quando a Internet era uma grande experimentação. O modelo vigente é outro”. A reflexão é Marcos Dantas, professor titular da Escola de Comunicação da UFRJ.

“Ao que parece, as denúncias de Edward Snowden ainda não haviam ensinado nada a muita gente”, assinala Dantas. “O escândalo Facebook/Cambridge Analytica escancarou, para quem ainda se fazia de ingênuo, a real natureza da Internet hoje, que é a de um grande mercado de dados pessoais”.

De acordo com ele, a rede vem sendo, cada vez mais, controlada por grandes corporações. “São elas que mediam, majoritariamente, o contato com a Internet. Tem-se investigado eleições, tem prática de censura, tem muita coisa acontecendo que aponta ser urgente repensar esse modelo e reivindicar uma regulação para a Internet”.

Por isso, segundo Dantas, o debate sobre a Internet que tem que ser feito, hoje, não é sobre a infra-estrutura, mas sobretudo um debate político. “O mercado da Internet movimenta cerca de 50 bilhões de dólares. Por isso, é preciso entender que as redes sociais como praças de mercado”, salienta. O objetivo das redes, conforme argumenta Dantas, é fazer com que o encontro social, aparentemente cultural, gere negócios. “Antes da Internet, o modelo de negócios clássico era linear. Karl Marx dizia que o capital busca sempre anular o espaço pelo tempo. É isso que as plataformas da Internet têm feito”.

“Navegar online é expressar seus amores, paixões, rancores, ódios, preferências. As palavras-chave estão lá, o que faz determinados anúncios serem orientado para os usuários. É um sistema de leilão”, denuncia Dantas. “Cada vez que alimentamos esses aplicativos e plataformas com nossos dados, estamos oferecendo um valor para eles. Um valor não-pago. É a Mais-Valia 2.0”.

Na avaliação do estudioso, esse sistema político e econômico está assumindo o controle desta infra-estrutura, sobre o qual a cidadania não tem nenhum controle e sequer sabe o que está acontecendo. “A Internet como é hoje é uma construção política e econômica que vem de 10, 20 anos. Precisamos de uma alternativa crítica, sob um modelo público de infra-estrutura e, em última instância, da próxima plataforma de interação social.”, problematiza.

Crescente no mundo, mas ainda incipiente no Brasil, a discussão em torno dessa regulação abarca questões fundamentais para a democracia e a garantia de direitos. Outros países têm balizado o debate em pontos como soberania política, cultural e de dados, além de privacidade e liberdade de expressão. “É preciso começar a discutir um projeto político, radicalmente democrático, que passe por uma desnaturalização do modelo de Internet vigente”, acrescenta.

Fotos: Bia Barbosa.