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Ao anunciarem no final do ano a existência de negociações, a Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer) e a Boeing foram bastante sucintas com relação aos termos dessas conversações.

Por meio de sua comunicação corporativa, a fabricante nacional confirma ao Engenheiro apenas “uma potencial combinação”, sem esclarecer os pontos das tratativas ou questões fundamentais, como por exemplo se os postos de trabalho no País serão preservados. O Ministério da Defesa também se abstém de aprofundar o assunto, não obstante afirme que o controle acionário da Embraer não será “colocado à mesa de negociação”. Para o presidente da FNE, Murilo Pinheiro, cabe ao governo, detentor de ações com poder de vetar transações lesivas ao País (golden share), “não permitir retrocesso que implique desemprego, especialmente na engenharia, perda de capacidade tecnológica e até vulnerabilidade em termos de segurança nacional”.

A preocupação procede, já que a Embraer é a principal exportadora de bens de alto valor agregado do País, com 18 mil empregados, dos quais 4 mil engenheiros, e é considerada companhia estratégica na área de defesa pela Lei 12.598/12. E não está se falando apenas de uma companhia aeroespacial, como esclarece William Nozaki, professor de ciência política e economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FespSP): “A Boeing é parte constitutiva do complexo industrial-militar norte-americano e uma aliada fundamental da política de defesa dos EUA.” Por isso, receia ele, uma fusão deixa ainda “mais vulneráveis a defesa e a soberania do Brasil”.

O engenheiro Ozires Silva, ex-presidente e um dos fundadores da Embraer, lembra que a empresa, nascida em 1969, conseguiu se estabelecer graças à Força Aérea Brasileira (FAB) interessada no setor de defesa e à criação do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), que formou os recursos humanos necessários graduando engenheiros aeronáuticos. Tal ação, frisa, gerou uma “nova vocação para São José dos Campos (cidade paulista onde estão localizados a fabricante e o instituto), o Vale do Paraíba e para o Brasil”. E prossegue: “Pelo seu exemplo, (a Embraer) pode ter transformado muitos brasileiros em cultivadores do conhecimento. Ou seja, uma indutora do desenvolvimento.”

Marco Aurélio Cabral Pinto, docente da Universidade Federal Fluminense (UFF) e consultor do projeto “Cresce Brasil + Engenharia + Desenvolvimento”, ressalta que o Estado brasileiro injetou muitos recursos na fabricante e lamenta que “todo esse investimento e gerações de brasileiros se dedicando a esse projeto” possam se perder a partir da junção à Boeing. Ele contextualiza: “A partir de 2006, assistimos ao distanciamento da Embraer do próprio País, quando foram iniciadas operações nos Estados Unidos e progressivamente se aproximaram da indústria norte-americana de tal ordem que a exportação de um Super Tucano da Embraer tem que ser aprovada pelo Departamento de Estado daquele país.” Cabral Pinto lança uma ironia para mostrar a complexidade das atuais discussões: “A Boeing jamais seria comprada pelos chineses.”

Produções civis e militares

Já a opção de segregar as atividades comerciais e militares implica questões de complexa resolução, segundo Jonathan de Araújo de Assis, pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes) – coletivo multidisciplinar que reúne graduandos, mestres e doutores ligados às áreas de paz, defesa e segurança, vinculado ao Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista (Ippri-Unesp). Ele explana: “Talvez a principal gire em torno dos chamados sistemas de armas modernos, que hoje se beneficiam de tecnologias desenvolvidas no setor civil, sobretudo aquelas vinculadas aos regimes de comando, controle, comunicações e computacionais.”

No caso da Embraer, Assis salienta que o jato KC-390, atualmente um dos mais importantes projetos militares da companhia e que se encontra em fase final de desenvolvimento e certificação, utiliza componentes e estruturas da versão comercial da empresa. “Portanto, é cada vez menos óbvia a delimitação dessas produções.” Além disso, prossegue, a Embraer participa de diversos projetos estratégicos das Forças Armadas do País, como o Programa de Desenvolvimento de Submarinos da Marinha do Brasil (Prosub), por meio de sua subsidiária Atech; e o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron), com as controladas Savis e Bradar.

Para Murilo, “frentes de atuação como essas não podem simplesmente ser transferidas para uma empresa estrangeira”. Assis diz que outro ponto que carece de melhores explicações é como um eventual acordo com a Boeing pode afetar o programa de cooperação entre Brasil e Suécia no âmbito do novo caça Gripen (versão monoposto, para um piloto). O equipamento está sendo desenvolvido pela Embraer e outras empresas brasileiras em parceria com a sueca Saab. O contrato assinado entre os dois governos, há três anos, no valor de US$ 5,4 bilhões, contempla a transferência de tecnologia à construção de aeronaves de combate avançadas, com a previsão de entrega de oito dessas em 2021, sendo concluída a entrega dos 36 caças encomendados em novembro de 2024.

De um ponto de vista estritamente empresarial, observa Nozaki, a junção dos negócios pode aumentar a competitividade das duas empresas. Ele lembra que, no último trimestre de 2017, a europeia Airbus, principal concorrente da Boeing no mercado de grandes jatos, comprou uma fatia majoritária da Bombardier, essa concorrente da Embraer no segmento de jatos com até 150 assentos. Todavia, insiste o docente, é fundamental entender o setor também a partir de uma ótica estratégica e macropolítica. “Não haverá acordo que resolva a questão de transferência de processos de pesquisa, desenvolvimento e inovação tecnológica, além do acesso privilegiado a estratégias, projetos e informações sigilosas relacionados à defesa e soberania nacionais.”