Imprimir

radiacao na medicina tipos exames medicina nuclearA área nuclear teve avanços recentes, como o decreto sobre a Política Nuclear Brasileira (PNB), em dezembro de 2018. Embora as aplicações em Medicina e Pesquisas não se comparem, em termos de complexidade, com a segurança nuclear necessária para a operação de centrais nucleares, por exemplo, há conflitos normativos que prejudicam os usuários que mais contribuem para a imagem positiva da energia nuclear. Comentamos neste artigo o problema mais recente, demonstrando que quando o ordenamento jurídico não é respeitado, os atos administrativos podem ser nulos. Na contramão da desburocratização anunciada pelo Governo Federal, o marco regulatório da energia nuclear compromete uma das prioridades do próprio Governo.

Em julho de 2020, a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), uma autarquia federal criada em 1956, proibiu o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN), um dos institutos de pesquisas da CNEN situado na Cidade Universitária da USP, comercializar fontes radioativas de referência seladas para controle de qualidade dos instrumentos de medição de radiação. Essa proibição aconteceu após denúncia da única empresa privada que importa fontes similares. O valor das fontes importadas é cerca de três vezes maior do que as fontes produzidas no país. A medida atingiu em cheio hospitais públicos que compram as fontes do IPEN. Sem essas fontes, não puderam cumprir um dos requisitos para renovar suas autorizações para operação, e foram obrigados a desmarcar exames (cintilografias e tomografias por emissão de pósitrons). A denúncia usou como base a NOTA TÉCNICA N° 02/2010/GQUIP/GGTPS/ANVISA emitida em 28/10/2010, que exige que somente fontes de referência registradas na ANVISA possam ser usadas (as fontes do IPEN não são registradas). A Norma CNEN-NN-3.05, Requisitos de Segurança e Proteção Radiológica para Serviços de Medicina Nuclear, foi emitida em 1989, revisada pela Resolução CNEN 10/96 e, finalmente, a Resolução CNEN 159/13 está em vigor. Dentre outros requisitos, a Norma dispõe sobre a obrigatoriedade de fontes radioativas de referência com atividade mínima de 3,7 MBq de Cobalto-57, Bario-133 e Césio-137, mas não exige que as fontes sejam registradas na ANVISA.

A Nota Técnica da ANVISA poderia ser ignorada sem qualquer prejuízo do ponto de vista técnico porque existe no país um sistema eficiente para medir grandezas radiológicas, constituído por uma rede de laboratórios de calibração credenciados pelo Laboratório Nacional de Metrologia das Radiações Ionizantes (LNMRI), que é o laboratório delegado pelo INMETRO e situado no Instituto de Radioproteção e Dosimetria, Instituto da CNEN no Rio de Janeiro. O IPEN tem um Serviço de Metrologia que faz parte da Rede de calibração do LNMRI. A Norma ISO/IEC 17025 foi adotada pela Associação Brasileira de Normas Técnicas como ABNT NBR ISO/IEC 17025 – Requisitos Gerais para Competência de Laboratórios de Ensaio e Calibração. Essa Norma é a referência mundial que contém os requisitos para que os laboratórios de calibração demonstrem que são capazes de gerar resultados experimentais válidos. Ao contrário desse sistema, o registro na ANVISA é meramente burocrático, uma vez que a ANVISA não dispõe de laboratórios rastreados ao LNMRI e, portanto, não pode garantir o controle de qualidade das fontes radioativas. Esse era o entendimento e assim funcionava, até que a denúncia da empresa concorrente do IPEN mudou o entendimento da CNEN.

Pode-se, então, analisar duas hipóteses: (i) todas as autorizações para operação emitidas pela CNEN após 2010 são ATOS ADMINISTRATIVOS NULOS ou (ii) a proibição da aquisição das fontes radioativas de referência produzidas pelo IPEN é um ATO ADMINISTRATIVO NULO.

Segundo o Artigo 21 da Constituição Federal (CF) de 1988, compete à União autorizar, sob regime de permissão, a comercialização e a utilização de radioisótopos para a pesquisa e usos médicos, agrícolas e industriais. No Artigo 22 da CF, compete privativamente à União legislar sobre atividades nucleares de qualquer natureza (inciso XXVI). Para regulamentar os dois artigos da CF, o Artigo 2 da Lei 7.781 de 27/06/1989, estabelece que compete à Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), autarquia especial vinculada ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), baixar diretrizes específicas para radioproteção e segurança nuclear, atividade científico-tecnológica, industriais e demais aplicações nucleares, expedir regulamentos e normas de segurança e proteção relativas ao uso de instalações e de materiais nucleares (inciso II) e autorizar a utilização de radioisótopos para pesquisas e usos medicinais, agrícolas, industriais e atividades análogas (inciso XVII). Desde 1956, através do decreto 40.110/56 que criou a CNEN, essas atribuições têm sido exercidas.

O Art. 8º da Lei Nº 9.782 de 26/01/1999 criou a ANVISA com diversas competências, dentre as quais “controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública” e “radioisótopos para uso diagnóstico in vivo e radiofármacos e produtos radioativos utilizados em diagnóstico e terapia” (inciso IX) e quaisquer produtos que envolvam a possibilidade de risco à saúde, obtidos por engenharia genética, por outro procedimento ou ainda submetidos a fontes de radiação (inciso XI). A Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) 185, de 22/10/2001, aprova o Regulamento Técnico que trata do registro, alteração, revalidação e cancelamento do registro de produtos médicos na ANVISA. Outros produtos para saúde, definidos como “correlatos” equiparam-se aos produtos médicos para fins de aplicação, excetuando-se os reagentes para diagnóstico de uso in vitro. Os produtos médicos ativos destinados a emitir radiações ionizantes, para fins radiodiagnósticos ou radioterapêuticos, incluindo os produtos destinados a controlar ou monitorar tais produtos médicos ou que influenciam diretamente no funcionamento destes produtos, enquadram-se na Classe III.

Considerando a Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei 4.657/42), que determina que a “lei nova que estabeleça disposições gerais ou especiais a par dos já existentes, não revoga nem modifica lei anterior” (Art. 2o §2), e ainda que segundo os princípios gerais de direito (Art. 4o) e de integração de normas, a norma especifica tem preponderância sobre a norma geral no caso das normas específicas da CNEN. A Nota Técnica da ANVISA é de natureza geral e não específica e a Lei de criação da ANVISA não possui competência constitucional para regulação e disposição de materiais radioativos em território nacional, conforme artigos 21-XXIII e 22-XXVI da Constituição Federal de 1988. É nosso entendimento que não há qualquer impedimento para a realização das atividades de diagnóstico e terapia autorizadas pela CNEN relacionadas ao cumprimento da Nota Técnica da ANVISA.

O Art. 4º da Lei Nº 13.848 de 25/06/2019, a qual dispõe sobre a gestão e a organização das agências reguladoras, estabelece que cada agência deverá observar, em suas atividades, a devida adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquela necessária ao atendimento do interesse público. No Art. 29, estabelece que, no exercício de suas competências definidas em lei, duas ou mais agências reguladoras poderão editar atos normativos conjuntos que deverão ser aprovados pelo conselho diretor ou pela diretoria colegiada de cada agência reguladora envolvida, por procedimento idêntico ao de aprovação de ato normativo isolado, observando-se em cada agência as normas aplicáveis ao exercício da competência normativa previstas no respectivo regimento interno (§1º) e os atos normativos conjuntos deverão conter regras sobre a fiscalização de sua execução(§2º). Portanto, esses mecanismos poderiam ter sido usados na situação aqui comentada, entre CNEN, ANVISA e INMETRO/LNMRI, antecipando-se aos problemas que os usuários possam enfrentar.

A denúncia foi recebida pela CNEN em um momento delicado. Espera-se a criação da Agência Nacional de Segurança Nuclear e a reorganização dos institutos da CNEN subordinados ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). A agência reguladora é uma demanda antiga e necessária, visando o efetivo cumprimento da Convenção de Segurança Nuclear de 1994, ratificada pelo Brasil em 1998. Contudo, a estruturação da Agência não pode limitar-se à divisão de tarefas e de cargos de confiança com a autarquia que gerenciará os institutos de pesquisas da CNEN. A Agência deverá adotar conceitos modernos de governança e procedimentos para avaliação do impacto regulatório, e não prolongar conflitos e inconsistências que implicam no “custo Brasil da área nuclear”. Não se deve duplicar estruturas de licenciamento e fiscalização em diversos órgãos, nem substituir os critérios técnicos por exigências burocráticas estéreis. Essas iniciativas aumentariam os custos de toda a área de assistência à Saúde, pública e privada, e de projetos de pesquisas de novos medicamentos, mas não aumentariam a segurança dos trabalhadores, pacientes, público e meio ambiente e não garantiriam a qualidade dos produtos e serviços prestados. Vigiemos, pois.

Silvia Maria Velasques de Oliveira é física e pesquisadora titular aposentada da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN).
Eduardo Oliveira Soares é advogado e especialista em Direito Ambiental pela PUC-RJ.

Jornal da Ciência

Foto: Uso em medicina nuclear.